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Sonhou que a menina no banco da praia vinha ao seu encontro, e em vez de condená-lo, o abençoava. Ele chorava em seu colo, pedia perdão, mas ela parecia não se importar com isso, apenas acariciava o seu cabelo e pedia que se acalmasse. Olivia, a generosidade e o perdão. Agora se pergunta se o amor por Ewa merece o que está fazendo.

Prefere acreditar que está certo. Se a moça está do seu lado, se encontrou-se com ela em um plano maior e mais próximo do Divi-no, se as coisas têm sido mais fáceis do que imaginara, deve haver uma razão para o que está acontecendo.

Não foi complicado burlar a vigilância dos “amigos” de Javits.

Conhecia este tipo de gente: além de fi sicamente preparados para reagir com rapidez e precisão, estavam educados para decorar cada rosto, acompanhar todos os movimentos, intuir o perigo. Com toda certeza sabiam que ele estava armado, e por isso o mantiveram sob vigilância por muito tempo. Mas relaxaram quando entenderam que não era uma ameaça. Devem inclusive ter imaginado que fazia parte do mesmo time, que fora na frente para checar o ambiente, e ver se não havia nenhum perigo para o seu patrão.

Não tinha patrão. E era uma ameaça. No momento em que entrou e decidiu qual a próxima vítima, já não podia voltar atrás — ou perderia o respeito por si mesmo. Notou que a rampa que levava até a tenda era vigiada, mas nada mais fácil que passar pela praia. Saiu 1 3 1

dez minutos depois de haver entrado, esperando que os “amigos”

de Javits notassem. Deu uma volta, desceu pela rampa reservada aos hóspedes do Martinez (teve que mostrar o cartão magnético que serve de chave) e caminhou de novo até o local do “almoço”. Andar na areia de sapatos não era a coisa mais agradável do mundo, e Igor notou o quanto estava cansado por causa da viagem, do medo de ter planejado algo impossível de ser realizado, e da tensão que experimentou logo após haver destruído o universo e as gerações futuras da pobre vendedora de artesanato. Mas precisava ir até o fi nal.

Antes de entrar de novo na grande tenda retirou do bolso o ca-nudinho do suco de abacaxi, que guardara com todo o cuidado.

Abriu o pequeno frasco de vidro que mostrara para a vendedora de artesanato: ao contrário do que dissera, não continha gasolina, mas algo absolutamente insignifi cante: uma agulha e um pedaço de rolha. Usando uma lâmina de metal, adaptou-a para que tivesse o diâmetro do canudo.

Em seguida, voltou à festa, a esta altura já cheia de convidados, que andavam de um lado para o outro aos beijos, abraços, griti-nhos de reconhecimento, segurando coquetéis de todas as cores possíveis para que as mãos fi cassem ocupadas e assim pudessem diminuir a ansiedade, aguardando a abertura do bufê para que pudessem se alimentar — com moderação, porque havia dietas e plásticas a se rem mantidas, e jantares no fi nal do dia, em que eventualmente se riam obrigados a comer mesmo que sem fome, porque assim recomenda a etiqueta.

A maior parte dos convidados era de gente mais velha. O que signifi cava: este evento é para profi ssionais. A idade dos participantes era mais um ponto a favor do seu plano, já que quase todos estavam precisando de óculos de correção para perto. Ninguém os usava, claro, porque a “vista cansada” é um sinal de idade. Ali todos devem 1 3 2

se vestir e se comportar como pessoas na fl or da idade, de “espírito jovem”, “disposição invejável”, fi ngindo que não prestam atenção porque estão preocupados com outras coisas — quando na verdade a única razão é que não conseguem ver exatamente o que está se passando. Suas lentes de contato permitiam decifrar uma pessoa a alguns metros de distância: logo em seguida já saberiam com quem estavam falando.

Só dois convidados reparavam tudo e todos — os “amigos” de Javits. Mas, desta vez, eram eles que estavam sendo observados.

Igor colocou a pequena agulha dentro do canudo, e fi ngiu mergulhá-lo de novo dentro do copo de suco.

Um grupo de moças bonitas, perto da mesa, parecia escutar com atenção as histórias extraordinárias de um jamaicano; na verdade, cada uma devia estar fazendo planos para afastar as concorrentes e levá-lo para a cama — já que a lenda dizia que eram imbatíveis no sexo.

Ele se aproximou, retirou o canudo do copo, soprou o alfi nete em direção à sua vítima. Ficou perto apenas o sufi ciente para ver o homem levar as mãos às costas.

Em seguida, afastou-se para voltar ao hotel e tentar dormir.

O curare, originalmente usado pelos índios da América do Sul para caçar com dardos, pode ser encontrado em hospitais europeus

— já que sob condições controladas é usado para paralisar certos músculos, o que facilita o trabalho do cirurgião. Em doses mortais

— como na ponta do alfi nete que havia disparado — faz com que pássaros caiam no chão em dois minutos, javalis agonizem por um quarto de hora, e grandes mamíferos — como o homem — precisem de vinte minutos para morrer.

Ao atingir a corrente sanguínea, todas as fi bras nervosas do corpo relaxam em um primeiro momento, e depois param de funcionar — provocando asfi xia lenta. O mais curioso — ou o pior, como 1 3 3

diriam alguns — é que a vítima está absolutamente consciente do que se passa, mas não consegue nem se mover para pedir ajuda, nem impedir o processo de paralisia lenta que vai tomando conta do seu corpo.

Na selva, se alguém durante uma caçada corta o dedo no dardo ou na fl echa envenenada, os índios sabem o que fazer: respiração boca a boca e uso de um antídoto à base de ervas que sempre carregam com eles, porque tais acidentes são comuns. Nas cidades, os procedimentos normais de paramédicos são absolutamente inúteis

— porque acham que estão diante de um ataque cardíaco.

Igor não olhou para trás enquanto caminhava de volta. Sabia que neste momento um dos dois “amigos” estava procurando o culpado, enquanto o outro ligava para uma ambulância, que chegaria rápido ao local, mas sem saber direito o que estava acontecendo. Desceriam com suas roupas coloridas, seus coletes vermelhos, um desfi brilador

— aparelho que dá choques no coração — e uma unidade portátil de eletrocardiograma. No caso do curare, o coração parece ser o último músculo a ser afetado, e continua batendo mesmo depois da morte cerebral.

Não notariam nada de anormal nos batimentos cardíacos, coloca-riam soro em uma de suas veias, eventualmente considerariam que se trata de um mal passageiro por causa do calor ou de uma intoxicação alimentar, mas mesmo assim era necessário tomar todas as providências de praxe, o que podia incluir uma máscara de oxigênio. A esta altura os vinte minutos já teriam passado, e embora o corpo pudesse ainda estar vivo, o estado vegetativo era inevitável.

Igor torceu para que Javits não tivesse a sorte de ser socorrido a tempo; passaria o resto de seus dias em uma cama de hospital, em estado vegetativo.

Sim, planejou tudo. Usou seu avião particular para poder entrar na França com uma pistola que não pudesse ser identifi cada e os diversos 1 3 4

venenos que conseguira usando conexões com criminosos chechenos que atuavam em Moscou. Cada passo, cada movimento tinha sido cuidadosamente estudado e ensaiado com precisão, como costumava fazer em um encontro de negócios. Fizera uma lista de vítimas na cabeça: exceto a única que conhecia pessoalmente, todas as outras deviam ser de classes, idades, e nacionalidades diferentes. Analisara por meses a vida de assassinos em série, usando um programa de computador muito popular entre os terroristas, que não deixava pistas das pesquisas que fazia. Tomara todas as providências necessárias para escapar sem ser notado, depois de haver cumprido a sua missão.

Está suando. Não, não se trata de arrependimento — talvez Ewa mereça mesmo todo este sacrifício — mas da inutilidade de seu projeto. Evidente que a mulher que mais amava precisava saber que ele seria capaz de tudo por ela, inclusive destruir universos, mas será que valia mesmo a pena? Ou em determinados momentos é necessário aceitar o destino, deixar que as coisas caminhem normalmente, e que as pessoas voltem ao estado de razão?