Está cansado. Não está mais conseguindo refl etir direito — e quem sabe, melhor que o assassinato é o martírio. Entregar-se, e desta maneira demostrar o sacrifício maior, daquele que oferece a sua própria vida por amor. Foi isso que Jesus fez pelo mundo, é seu melhor exemplo; quando o viram derrotado, preso a uma cruz, pensaram que tudo tinha acabado ali. Saíram orgulhosos de seu gesto, vencedores, certos de que tinham acabado com um problema para sempre.
Está confuso. Seu plano é destruir universos, e não oferecer sua liberdade por amor. A moça de sobrancelhas grossas parecia uma Virgem de Pietat em seu sonho; a mãe com o fi lho nos braços, ao mesmo tempo orgulhosa e sofredora.
Vai até o banheiro, coloca a cabeça debaixo do chuveiro aberto com água gelada. Talvez seja a falta de sono, o lugar estranho, a diferença horária, ou o fato de que já esteja fazendo aquilo que planejou 1 3 5
— e jamais julgou capaz de realizar. Lembra-se da promessa feita diante das relíquias de Santa Madalena em Moscou. Mas será que está agindo certo? Precisa de um sinal.
O sacrifício. Sim, devia ter pensado nisso, mas talvez só mesmo a experiência com os dois mundos que destruiu naquela manhã tenha lhe permitido ver mais claro o que acontece. A redenção do amor através da entrega total. Seu corpo será entregue aos carrascos que julgam apenas os gestos, e se esquecem das intenções e das razões que estão por detrás de qualquer ato considerado “insano” pela sociedade. Jesus (que entende que o amor merece qualquer coisa) receberá seu espírito, e Ewa fi cará com sua alma. Saberá do que ele foi capaz: entregar-se, imolar-se diante da sociedade, tudo em nome de alguém.
Não será condenado à morte, já que a guilhotina foi abolida da França há muitas décadas, mas possivelmente passará muitos anos na prisão.
Ewa se arrependerá de seus pecados. Virá visitá-lo, trará comida, terão tempo para conversar, refl etir, amar — mesmo que seus corpos não se toquem, suas almas fi nalmente estão mais juntas que nunca. Mesmo que precisem esperar para viver na casa que pretende construir perto do lago Baikal, essa espera os purifi cará e os abençoará.
Sim, o sacrifício. Fecha o chuveiro, contempla um pouco seu rosto no espelho, e não vê a si mesmo, mas ao Cordeiro que está prestes a ser imolado de novo. Veste a mesma roupa que usava de manhã, desce até a rua, caminha até o lugar onde a pequena vendedora costumava sentar-se, e aproxima-se do primeiro policial que vê.
— Matei a moça que estava aqui.
O policial olha para o homem bem-vestido, mas com os cabelos desgrenhados e profundas olheiras.
— A que vendia artesanato?
Confi rma com a cabeça: a que vendia artesanato.
O policial não dá muita atenção à conversa. Cumprimenta com a cabeça um casal que passa, carregado de sacolas de supermercado:
— Vocês deviam arranjar um empregado!
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— Desde que você pague o salário — responde a mulher, sorrindo. — Impossível conseguir gente para trabalhar neste lugar do mundo.
— Cada semana a senhora aparece com um diamante diferente no dedo. Não penso que essa seja a verdadeira razão.
Igor olha aquilo sem entender nada. Acabara de confessar um crime.
— O senhor não entendeu direito o que disse?
— Está muito quente. Vá dormir um pouco, descanse, Cannes tem muito a oferecer aos seus visitantes.
— Mas e a moça?
— O senhor a conhecia?
— Jamais a vi antes, em toda a minha vida. Ela estava aqui hoje pela manhã. Eu...
— ...o senhor viu a ambulância chegar, uma pessoa sendo remo-vida. Entendo. E concluiu que ela foi assassinada. Não sei de onde o senhor vem, não sei se tem fi lhos, mas esteja atento às drogas. Dizem que não fazem tão mal assim, e veja o que aconteceu com a pobre fi lha dos portugueses.
E afasta-se sem esperar qualquer resposta.
Devia insistir, dar os detalhes técnicos, e assim ele pelo menos o levaria a sério? Claro, era impossível matar uma pessoa em plena luz do dia, na principal avenida de Cannes. Estava disposto a comentar o outro mundo que se apagou numa festa repleta de gente.
Mas o representante da lei, da ordem, dos bons costumes, não lhe dera ouvidos. Em que mundo estavam vivendo? Precisaria sacar a arma do bolso e atirar em todas as direções, para que fi nalmente acreditassem nele? Precisaria se comportar como um bárbaro, que age sem qualquer motivo para seus atos, até que fi nalmente lhe dessem ouvidos?
Igor acompanha com os olhos o policial, vê que ele atravessa a rua e entra em uma lanchonete. Decide fi car ali mais algum tem-1 3 7
po, esperando que mude de idéia, receba alguma informação da delegacia, e volte para conversar com ele e pedir mais informações sobre o crime.
Mas tem quase certeza de que isso não acontecerá: lembra-se do comentário sobre o diamante no dedo da mulher. Por acaso sabia de onde vinha? Claro que não: caso contrário, o policial já a teria levado para a delegacia, e a acusado de uso de material criminoso.
Para a mulher, claro, o brilhante havia aparecido magicamente em uma loja de alto luxo, depois de ter sido — como sempre diziam os vendedores — lapidado por joalheiros holandeses ou belgas. Era classifi cado pela transparência, o peso, o tipo de corte. O preço podia variar de algumas centenas de euros a algo considerado verdadei-ramente ultrajante pela maioria dos mortais.
Diamante. Brilhante, se assim desejam chamar. Como todos sabiam, um simples pedaço de carvão, trabalhado pelo calor e pelo tempo. Como não contém nada orgânico, é impossível saber quanto tempo leva para mudar sua estrutura, mas geólogos estimam algo entre 300 milhões e 1 bilhão de anos. Geralmente formado a 150
km de profundidade, e que aos poucos vai subindo para a superfície, o que permite a mineração.
Diamante, o material mais resistente e mais duro criado pela natureza, que só pode ser cortado e lapidado por outro. As partículas, os restos desta lapidação serão utilizadas na indústria, em máquinas de polir, cortar, e nada além disso. Diamante serve apenas como uma jóia, e nisso reside sua importância: é absolutamente inútil para qualquer outra coisa.
A suprema manifestação da vaidade humana.
Há poucas décadas, com um mundo que parecia se voltar para coisas práticas e para a igualdade social, estavam desaparecendo do mercado. Até que a maior companhia de mineração do mundo, com sede na África do Sul, resolveu contratar uma das melhores agências 1 3 8
de publicidade do planeta. Superclasse encontra-se com a Superclasse, pesquisas são feitas, e resultam em apenas uma única frase de três palavras:
“Diamantes são eternos.”
Pronto, o problema estava resolvido, as joalherias começaram a investir na idéia, e a indústria voltou a fl orescer. Se diamantes são eternos, nada melhor para expressar o amor, que teoricamente deve também ser eterno. Nada mais determinante para distinguir a Superclasse dos outros bilhões de habitantes que se encontravam na parte de baixo da pirâmide. A demanda pelas pedras aumentou, os preços começaram a subir. Em poucos anos o tal grupo sul-africano, que até então ditava as regras do mercado internacional, viu-se cercado de cadáveres.
Igor sabe do que está falando; quando precisou ajudar os exércitos que se digladiavam em um confl ito tribal, foi obrigado a percorrer um caminho árduo. Não se arrepende: conseguiu evitar muitas mortes, embora quase ninguém saiba disso. Fizera um comentário rápido com Ewa durante algum jantar esquecido, mas resolvera não levar o assunto adiante; quando fi zer caridade, que sua mão esquerda jamais saiba o que faz sua mão direita. Salvou muitas vidas com diamantes, embora isso jamais vá constar de sua biografi a.