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Voltou a Paris sabendo que a alma do seu pai estava no Paraíso, e sua memória permaneceria na terra que tanto amou. Continuou trabalhando além da hora, fazendo desenhos com temas de beduí-

nos, experimentando amostras que trouxera consigo. Se a tal fi rma francesa — conhecida por sua ousadia e seu bom gosto — estava interessada no que produziam em sua terra, com toda certeza em breve a notícia chegaria na capital da moda e a demanda seria grande.

Tudo era uma questão de tempo. Mas, pelo visto, as notícias corriam rapidamente.

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Certa manhã foi chamado pelo diretor. Pela primeira vez entrava naquela espécie de templo sagrado, a sala do grande costureiro, e fi cou impressionado com a desorganização do local. Jornais em todos os cantos, papéis empilhados em cima da mesa antiga, uma quantidade imensa de fotos pessoais com celebridades, capas de revista emolduradas, amostras de material, e um vaso cheio de plumas brancas de todos os tamanhos.

— Você é ótimo no que está fazendo. Dei uma olhada nos esboços que deixa ali, expostos, para todo mundo ver. Peço que tenha mais cuidado com isso; nunca sabemos se alguém vai mudar de emprego amanhã, e carregar boas idéias para outra marca.

Hamid não gostou de saber que estava sendo espionado. Mas permaneceu quieto, enquanto o diretor continuava.

— Por que digo que é bom? Porque vem de uma terra onde as pessoas se vestem de maneira distinta, e está começando a entender como adaptar isso para o Ocidente. Existe apenas um grande problema: esse tipo de tecido nós não conseguimos encontrar aqui. Esse tipo de desenho tem conotações religiosas; a moda é sobretudo a ves-timenta da carne, embora refl ita muito o que o espírito quer dizer.

O diretor foi até uma das pilhas de revista em um canto, e como se soubesse de cor tudo que estava ali, retirou algumas edições, possivelmente compradas nos bouquinistes — os livreiros que desde a época de Napoleão espalham seus livros na margem do Sena. Abriu uma antiga Paris Match com Christian Dior na capa.

— O que fez deste homem uma lenda? Soube entender o gênero humano. Dentre as muitas revoluções que provocou na moda, uma delas merece ser destacada: logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa inteira não tinha praticamente como vestir-se por causa da escassez de tecidos, criou fi gurinos que necessitavam de enorme quantidade de material. Desta maneira, não mostrava apenas uma bela mulher vestida, mas o sonho de que tudo voltaria a ser como era; elegância, abundância, fartura. Foi atacado e difamado 1 5 7

por isso, mas sabia que estava na direção correta — que é sempre a direção contrária.

Colocou a Paris Match exatamente no lugar de onde a havia retirado, e voltou com uma outra revista.

— E aqui está Coco Chanel. Abandonada na infância por seus pais, ex-cantora de cabaré, o tipo da mulher que tem tudo para esperar apenas o pior da vida. Mas aproveitou a única chance que teve

— amantes ricos — e em pouco tempo transformava-se na mulher mais importante da costura em sua época. O que fez? Libertou as outras mulheres da escravidão dos corpetes, aqueles objetos de tortura que moldavam o tórax e impediam qualquer movimento natural.

Errou em uma coisa: escondeu seu passado, quando isso a ajudaria a transformar-se em uma lenda mais poderosa ainda — a mulher que sobreviveu apesar de tudo.

Tornou a colocar a revista no lugar, e continuou:

— Você deve perguntar: e por que não fi zeram isso antes? Nunca teremos a resposta certa. Claro que devem ter tentado — costureiros que foram completamente esquecidos pela história, porque não sou-beram refl etir em suas coleções o espírito do tempo em que viviam.

Para que o trabalho de Chanel pudesse ter a repercussão que viria a ter, não bastava o talento da criadora ou os amantes ricos: a sociedade precisava estar pronta para a grande revolução feminista que ocorreu no mesmo período.

O diretor fez uma pausa.

— É agora o momento da moda do Oriente Médio. Justamente porque as tensões e o medo que mantêm o mundo em suspense vêem da sua terra. Sei disso porque sou o diretor desta casa. Afi nal de contas, tudo começa em um encontro dos principais fornecedores de tinta e pigmentação.

“Afi nal de contas, tudo começa em um encontro dos principais fornecedores de tinta e pigmentação.” Hamid olhou de novo o gran-1 5 8

de estilista sentado sozinho, no terraço, com a máquina fotográfi ca pousada na poltrona ao seu lado. Possivelmente ele também o tinha visto entrar, e pensava agora de onde tirou tanto dinheiro para chegar a ser seu maior competidor.

O homem que agora olha o vazio e fi nge não se preocupar com nada tinha feito o possível para que não entrasse na Federação. Imaginava que o petróleo estava fi nanciando seus negócios, e isso era uma concorrência desleal. Não sabia que, oito meses depois da morte de seu pai, e dois meses depois que o diretor da marca para a qual trabalhava lhe havia oferecido um cargo melhor — embora seu nome não pudesse aparecer, já que a casa tinha outro estilista contratado para brilhar nos holofotes e nas passarelas — o sheik o mandara chamar de novo, desta vez para um encontro pessoal.

Quando chegou no que antes era sua cidade, teve difi culdades em reconhecer o lugar. Esqueletos de arranha-céus formavam uma fi la interminável na única avenida da cidade, o trânsito era insuportável, o antigo aeroporto estava próximo do caos completo, mas a idéia do governante começava a se materializar: aquele seria o lugar de paz no meio das guerras, o paraíso dos investimentos no meio dos tumultos do mercado fi nanceiro mundial, a face visível da nação que tantos se compraziam em criticar, humilhar, cercar de preconceitos. Outros países da região começaram a acreditar na cidade que se erguia no meio do deserto, e o dinheiro começou a jorrar — primeiro como uma fonte, em seguida como um rio caudaloso.

O palácio, entretanto, ainda era o mesmo, embora outro bem maior estivesse sendo construído não muito longe dali. Hamid chegou animado para o encontro, dizendo que havia recebido uma excelente proposta de trabalho, e já não precisava mais da ajuda fi -

nanceira; muito pelo contrário, iria pagar cada centavo que haviam investido nele.

— Peça demissão — disse o sheik.

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Hamid não entendeu. Sim, sabia que a empresa que seu pai lhe deixara estava dando resultados ótimos, mas tinha outros sonhos para o seu futuro. Mas não podia desafi ar por uma segunda vez o homem que lhe ajudara tanto.

— Em nosso único encontro, eu pude dizer “não” a Sua Alteza porque defendia os direitos de meu pai, que sempre foram mais importantes do que qualquer outra coisa neste mundo. Agora, po-rém, preciso dobrar-me à vontade do meu governante. Se acha que perdeu seu dinheiro investindo no meu trabalho, farei o que pede.

Voltarei para cá e cuidarei de minha herança. Se é preciso renunciar a meu sonho para honrar o código de minha tribo, farei isso.

Disse estas palavras com voz fi rme. Não podia demonstrar fra-queza diante de um homem que respeita a força do outro.

— Não pedi que voltasse para cá. Se foi promovido, é porque já sabe o que precisa para formar sua própria marca. É isso que quero.

“Que eu crie minha própria marca? Será que estou entendendo direito?”

— Vejo cada vez mais as grandes marcas de luxo se instalando aqui — continuou o sheik. — E sabem o que estão fazendo: nossas mulheres estão começando a mudar as maneiras de pensar e de vestir. Mais do que qualquer investimento estrangeiro, o que tem afetado mais nossa região é a moda. Tenho conversado com homens e mulheres que entendem do assunto; sou apenas um velho beduíno que quando viu seu primeiro carro, achou que devia ser alimentado como os camelos.

“Gostaria que os estrangeiros lessem nossos poetas, escutassem nossa música, dançassem e cantassem os temas que vêm sendo trans-mitidos de geração em geração através da memória de nossos antepassados. Mas pelo visto, ninguém está interessado nisso. Para aprenderem a respeitar nossa tradição, só existe uma única maneira: aquela em que você trabalha. Se entenderem quem somos através da maneira como nos vestimos, terminarão entendendo o resto.”