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No dia seguinte, encontrou-se com um grupo de investidores de outros países. Colocaram à sua disposição uma fantástica soma de dinheiro, e um prazo para que tudo fosse reembolsado. Perguntaram se aceitava o desafi o, se estava preparado para ele.

Hamid pediu tempo para pensar. Foi até o túmulo do seu pai, rezou a tarde inteira. Caminhou durante a noite pelo deserto, sentiu o vento que congelava seus ossos, e voltou até o hotel onde os estrangeiros estavam hospedados. “Bendito aquele que consegue dar aos seus fi lhos asas e raízes”, diz um provérbio árabe.

Precisava das raízes: existe um lugar no mundo onde nascemos, aprendemos uma língua, descobrimos como nossos antepassados su-peravam seus problemas. Em um dado momento, passamos a ser responsáveis por este lugar.

Precisava das asas. Elas nos mostram os horizontes sem fi m da imaginação, nos levam até nossos sonhos, nos conduzem a lugares distantes. São as asas que nos permitem conhecer as raízes de nossos semelhantes, e aprender com eles.

Pediu inspiração a Deus, e começou a rezar. Duas horas depois, lembrou-se de uma conversa de seu pai com um dos amigos que freqüentavam a loja de tecidos:

“— Hoje de manhã, meu fi lho me pediu dinheiro para comprar um carneiro; devo ajudá-lo?

“— Esta não é uma situação de emergência. Então, aguarde mais uma semana antes de atender o seu fi lho.

“— Mas tenho condições de ajudá-lo agora; que diferença fará esperar uma semana?

“— Uma diferença muito grande. A minha experiência mostra que as pessoas só dão valor a algo quando têm a oportunidade de duvidar se irão ou não conseguir o que desejam.”

Fez com que os emissários esperassem uma semana, e em seguida aceitou o desafi o. Precisava de gente que se ocupasse do dinheiro, 1 6 1

que o investisse da maneira que indicasse. Precisava de empregados, de preferência vindos da mesma aldeia. Precisava de mais um ano no atual emprego, para aprender o que faltava.

Só isso.

“Tudo começa em uma fábrica de tintas.”

Não é exatamente assim: tudo começa quando as companhias que procuram as tendências do mercado, conhecidas por estúdios de tendência (em francês, “cabinets de tendence”, em inglês “trend adapters”), notam que determinada camada da população se interessa mais por determinados assuntos que por outros — e isso nada tem a ver diretamente com a moda. Esta pesquisa é feita com base em entrevistas com consumidores, monitoração por amostras, mas sobretudo através da observação cuidadosa de um exército de pessoas

— geralmente entre 20 e 30 anos — que freqüenta boates, caminha pelas ruas, lê tudo que se publica em blogs na internet. Jamais olham as vitrines, mesmo que sejam de marcas respeitadas; o que está ali já atingiu o grande público, e está condenado a morrer.

O que os gênios dos estúdios de tendências querem saber exatamente é: qual será a próxima preocupação ou curiosidade do consumidor? Os jovens, por não terem dinheiro bastante para consumir os produtos de luxo, são obrigados a inventar novas roupas. Como vivem grudados no computador, dividem seus interesses com outros, e muitas vezes isso acaba tornando-se uma espécie de vírus que contagia toda a comunidade. Os jovens infl uenciam os pais na política, na leitura, na música — e não o contrário, como pensam os ingênuos.

Por outro lado, os pais infl uenciam os jovens naquilo que chamam de “o sistema de valores”. Mesmo que os adolescentes sejam rebeldes por natureza, sempre acreditam que a família está certa; podem se vestir de maneira estranha e gostar de cantores que soltam uivos e quebram guitarras — mas isso é tudo. Não têm coragem de ir mais adiante e provocar uma verdadeira revolução de costumes.

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“Já fi zeram isso no passado. Mas ainda bem que esta onda passou e retornou ao mar.”

Porque neste momento os estúdios de tendência mostram que a sociedade agora caminha para um estilo mais conservador, longe da ameaça que signifi caram as “suffragettes” (mulheres do início do sé-

culo XX, que lutaram e conseguiram o direito de voto feminino), ou os cabeludos e anti-higiênicos hippies (um grupo de loucos que julgou, um dia, que viver de paz e amor livre era possível).

Em 1960, por exemplo, um mundo envolvido em guerras sangrentas do período pós-colonial, assustado com o perigo de uma guerra atômica, e ao mesmo tempo em plena prosperidade econô-

mica, precisava desesperadamente de encontrar um pouco de alegria; da mesma maneira que Christian Dior havia entendido que a esperança da fartura estava no excesso de tecidos, os estilistas foram procurar uma combinação de cores que levantasse o estado de âni-mo geraclass="underline" chegaram à conclusão de que o vermelho e o violeta eram capazes de acalmar e provocar ao mesmo tempo.

Quarenta anos mais tarde, a visão coletiva havia mudado por completo: o mundo já não estava sob ameaça de guerra, mas de graves problemas ambientais: os estilistas passaram a optar por tons ligados à natureza, como a areia do deserto, as fl orestas, a água do mar. Entre um período e outro, várias tendências surgem e somem: psicodélica, futurista, aristocrática, nostálgica.

Antes que as grandes coleções sejam defi nidas, os estúdios de tendência de mercado dão um panorama geral do estado de espírito do mundo. E atualmente, parece que o tema central das preocupações humanas — apesar das guerras, da fome na África, do terrorismo, da falta de respeito pelos direitos humanos, da arrogância de algumas nações desenvolvidas — era como iríamos salvar nossa pobre Terra das muitas ameaças que foram criadas pela sociedade.

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“Ecologia. Salvar o planeta. Que ridículo.”

Hamid sabe que não adianta lutar contra o inconsciente coletivo.

Os tons, os acessórios, os tecidos, as supostas ações benefi centes da Superclasse, os livros que estão sendo publicados, as músicas que estão tocando nas rádios, os documentários de ex-políticos, os novos fi lmes, o material usado para sapatos, os sistemas de abasteci-mento de carros, os abaixo-assinados para os congressistas, os bônus sendo vendidos pelos maiores bancos do mundo, tudo parece estar concentrado em apenas uma coisa: salvar o planeta. Fortunas estão sendo criadas da noite para o dia, grandes multinacionais estão conseguindo espaço na imprensa por causa de uma ou outra ação absolutamente irrelevante nessa área, organizações não-governamentais sem o menor escrúpulo conseguem colocar anúncios em poderosas cadeias de televisão, e recebem centenas de milhões de dólares em doações, porque todos parecem absolutamente preocupados com o destino da Terra.

Cada vez que lia nos jornais ou revistas os políticos de sempre usando o aquecimento global, ou a destruição do meio ambiente como plataforma para suas campanhas eleitorais, pensava consigo mesmo:

“Como podemos ser tão arrogantes? O planeta é, foi e será sempre mais forte que nós. Não podemos destruí-lo; se ultrapassarmos determinada fronteira, ele se encarregará de nos eliminar por completo da sua superfície, e continuará existindo. Por que não come-

çam a falar em ‘não deixar que o planeta nos destrua’?”

Porque “salvar o planeta” dá a sensação de poder, de ação, de nobreza. Enquanto “não deixar que o planeta nos destrua” é capaz de nos levar ao desespero, à impotência, à verdadeira dimensão de nossas pobres e limitadas capacidades.

Mas, enfi m, era isso que as tendências mostravam, e a moda precisa se adaptar aos desejos dos consumidores. As fábricas de tintas 1 6 4

estavam agora ocupadas com as melhores tonalidades para a pró-

xima coleção. Os fabricantes de tecido buscavam fi bras naturais, os criadores de acessórios como cintos, bolsas, óculos, relógios faziam o possível para se adaptar — ou pelo menos fi ngir se adaptar, usando normalmente folhetos explicativos, em papel reciclado, sobre como haviam feito um gigantesco esforço para preservar o meio ambiente. Tudo isso seria mostrado aos grandes estilistas na maior feira da moda, fechada ao público, com o sugestivo nome de Première Vision (Primeira Vista).