A partir daí, cada um desenharia suas coleções, usaria sua criatividade, e todos teriam a sensação de que a alta-costura era absolutamente criativa, original, diferente. Nada disso. Todos seguiam ao pé da letra o que os estúdios de tendência de mercado diziam.
Quanto mais importante a marca, menor a vontade de correr risco, já que o emprego de centenas de milhares de pessoas em todo o mundo dependia das decisões de um pequeno grupo, a Superclasse da costura, que já estava exausta de fi ngir que vendia algo diferente a cada seis meses.
Os primeiros desenhos eram feitos pelos “gênios incompreendidos”, que sonhavam em ver um dia seu nome na etiqueta de uma roupa. Trabalhavam aproximadamente de seis a oito meses, no início usando apenas lápis e papel, logo em seguida fazendo protótipos com material barato, mas que poderia ser fotografado em modelos e analisado pelos diretores. De cada cem protótipos, selecionavam em torno de vinte para o desfi le seguinte. Ajustes eram feitos: novos botões, cortes diferentes nas mangas, tipos diversos de costura.
Mais fotos — desta vez com as modelos sentadas, deitadas, andando — e mais ajustes, porque comentários do tipo “só serve para manequins na passarela” podiam destruir uma coleção inteira, e colocar a reputação da marca em jogo. Nesse processo, alguns dos 1 6 5
“gênios incompreendidos” eram sumariamente colocados na porta da rua, sem direito à indenização, já que estavam ali sempre fazendo um “estágio”. Os mais talentosos precisavam rever várias vezes suas criações, e estar absolutamente conscientes de que, por maior sucesso que o modelo tivesse, apenas o nome da marca seria mencionado.
Todos prometiam vingança um dia. Todos diziam a si mesmos que terminariam abrindo sua própria loja, e fi nalmente seriam reconhecidos. Mas todos sorriam e continuavam a trabalhar como se estivessem muito entusiasmados por terem sido escolhidos. E à medida que os modelos fi nais iam sendo selecionados, mais gente era despedida, mais gente contratada (para a próxima coleção), e por fi m os tecidos escolhidos eram usados para produzir os vestidos que seriam apresentados no desfi le.
Como se fosse a primeira vez que estivessem sendo mostrados ao público. O que era parte da lenda, claro.
Porque a essa altura, revendedores do mundo inteiro já tinham em suas mãos fotos das modelos em todas as posições possíveis, detalhes dos acessórios, tipo de textura, preço recomendado, locais onde poderiam encomendar o material. Dependendo do tamanho e da importância da marca, a “nova coleção” começava a ser produzida em larga escala, em diversos lugares do mundo.
Finalmente, chegava o grande dia — melhor dizendo, as três semanas que marcavam o início de uma nova era (que, como todos sabiam, tinha apenas seis meses de duração). Começava em Milão, passava por Paris, e terminava em Londres. Jornalistas do mundo inteiro eram convidados, fotógrafos disputavam um lugar privilegiado, tudo era mantido em grande segredo, jornais e revistas dedicavam páginas e mais páginas às novidades, as mulheres se deslumbravam, os homens olhavam com certo desdém o que julgavam ser apenas uma “moda”, e pensavam que era preciso reservar alguns milhares 1 6 6
de dólares para gastar em algo que não tinha a menor importância para eles, mas que suas esposas consideravam como o grande emble-ma da Superclasse.
Uma semana depois, aquilo que tinha sido apresentado como absoluta exclusividade já estava em lojas do mundo inteiro. Ninguém se perguntava como tinha viajado tão rápido, e sido produzido em tão pouco tempo.
Mas a lenda é mais importante do que a realidade.
Os consumidores não se davam conta de que a moda era criada por aqueles que obedeciam à moda já existente. Que a exclusividade era apenas uma mentira em que queriam acreditar. Que grande parte das coleções elogiadas na imprensa especializada pertencia aos grandes conglomerados de produtos de luxo, que sustentavam essas mesmas revistas e jornais com anúncios de página inteira.
Claro, havia exceções, e depois de alguns anos de luta Hamid Hussein era uma delas. E nisso é que reside seu poder.
Repara que Ewa checa de novo seu celular. Não costumava fazer isso. Na verdade, detestava aquele aparelho, talvez porque lembrasse uma relação passada, uma época da sua vida que jamais conseguira saber o que havia passado, porque não costumavam tocar no assunto. Olha o relógio — ainda podem terminar o café sem sobressaltos.
Olha de novo o costureiro.
Oxalá tudo começasse em uma fábrica de tintas, e terminasse no desfi le. Mas não era assim.
Tanto ele como o homem que agora contempla sozinho o horizonte se encontraram pela primeira vez na Première Vision. Hamid ainda trabalhava na grande marca que o havia contratado como desenhista, embora o sheik já começasse a movimentar um pequeno exército de 11 pessoas que colocaria em prática a idéia de ter a moda como uma maneira de mostrar seu mundo, sua religião, sua cultura.
1 6 7
— Na maior parte do tempo, fi camos aqui escutando explicações de como as coisas simples podem ser apresentadas de maneira mais complicada — disse.
Passeavam pelos estandes de novos tecidos, tecnologias revolucionárias, as cores que seriam usadas nos dois anos seguintes, os acessórios cada vez mais sofi sticados — fi velas de cinto de platina, carteiras de cartão de crédito que se abriam com o apertar de um botão, pulseiras que podiam ser reguladas milimetricamente com a ajuda de um círculo encrustado de brilhantes.
O outro olhou-o de alto a baixo.
— O mundo sempre foi, e sempre continuará sendo complicado.
— Não acho. E se algum dia tiver que deixar o lugar em que estou agora, será para abrir o meu próprio negócio — que irá exatamente contra tudo isso que estamos vendo.
O costureiro riu.
— Você sabe como é este mundo. Você já ouviu falar da Federa-
ção, não é verdade? Estrangeiros só entram depois de muito, muito esforço.
A Federação Francesa da Alta-Costura era um dos clubes mais fechados do mundo. Defi nia quem participava ou não das Semanas de Moda de Paris, e ditava os padrões dos participantes. Fundada em 1868, tinha um poder gigantesco: registrou a marca “Alta-Costura”
(Haute-Couture), de modo que ninguém mais poderia usar esta expressão sem correr o risco de ser processado. Editava as dez mil có-
pias do Catálogo Ofi cial dos dois grandes eventos anuais, decidiam como seriam distribuídas as duas mil credenciais para jornalistas do mundo inteiro, selecionava os grandes compradores, escolhia os lugares de desfi le — segundo a importância do estilista.
— Sei como é — respondeu Hamid, terminando a conversa por ali. Pressentiu que aquele homem com quem conversava seria, no futuro, um grande estilista. Também entendeu que jamais seriam amigos.
1 6 8
Seis meses depois, tudo estava pronto para a sua grande aventura
— pediu demissão do emprego, abriu sua primeira loja em Saint-Germain des Près, e começou a lutar como podia. Perdeu muitas batalhas. Mas entendeu uma coisa: não podia dobrar-se à tirania das fi rmas que ditavam as tendências da moda. Precisava ser original, e conseguiu; porque trazia consigo a simplicidade dos beduínos, a sabedoria do deserto, o aprendizado na marca em que trabalhou por mais de um ano, a presença de gente especializada em fi nanças, e tecidos absolutamente originais e desconhecidos.
Dois anos mais tarde, abria cinco ou seis grandes lojas no país inteiro, e tinha sido aceito pela Federação — não apenas por causa do seu talento, mas dos contatos do sheik, cujos emissários nego-ciavam com rigor a concessão de fi liais de companhias francesas em seu país.