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E enquanto a água corria por debaixo da ponte, as pessoas mu-davam de opinião, os presidentes eram eleitos ou terminavam seus mandatos, a nova tecnologia ia ganhando cada vez mais adeptos, a internet passava a dominar as comunicações do planeta, a opinião pública passava a cobrar mais transparência em todos os ramos das atividades humanas, o luxo e o glamour voltavam a ocupar o espaço perdido. Seu trabalho crescia e se espalhava pelo resto do mundo: já não era apenas a moda, mas os acessórios, os móveis, os produtos de beleza, os relógios, os tecidos exclusivos.

Hamid agora era dono de um império, e todos aqueles que haviam investido em seu sonho estavam plenamente recompensados com os dividendos que pagava aos acionistas. Continuava a supervisionar pessoalmente grande parte do material que suas empresas produziam, acompanhava as sessões de fotos mais importantes, gostava de desenhar a maioria dos modelos, visitava o deserto pelo menos três vezes ao ano, rezava no lugar onde o pai havia sido enterrado, e prestava contas ao sheik. Agora tinha um novo desafi o diante de si: produzir um fi lme.

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Olha o relógio. Diz a Ewa que está na hora de ir. Ela pergunta se é tão importante assim.

— Não é tão importante. Mas eu gostaria de estar presente.

Ewa levanta-se. Hamid dá um último olhar ao costureiro solitário e famoso que contempla o Mediterrâneo, alheio a tudo.

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4:00 PM

Quando você é jovem, tem sempre o mesmo sonho: salvar o mundo. Alguns terminam esquecendo isso rápido, convencidos de que existem outras coisas importantes para fazer — como constituir família, ganhar dinheiro, viajar e aprender uma língua estrangeira.

Outros, entretanto, decidem que é possível participar de algo que faça uma diferença na sociedade e na maneira como o mundo de hoje será entregue às próximas gerações.

E começam as escolhas de profi ssão: políticos (no início sempre desejando ajudar a comunidade), ativistas sociais (que acreditam que o crime é causado pelas diferenças de classe), artistas (que acham que tudo está perdido, é preciso recomeçar do zero) e... policiais.

Savoy tinha absoluta certeza de que podia ser absolutamente útil.

Depois de ler muitos romances policiais, imaginava que se os maus estivessem atrás das grades, os bons sempre teriam um lugar ao sol.

Cursou a Academia com entusiasmo, tirou notas excelentes nos exames teóricos, adestrou seu físico para enfrentar situações de perigo, aprendeu a atirar com precisão, mesmo que jamais pretendesse matar alguém.

No primeiro ano, achou que estava aprendendo a realidade da profi ssão — seus companheiros se queixavam dos baixos salários, da incompetência da justiça, dos preconceitos relativos ao trabalho, e da ausência quase completa de ação na área em que atuavam. À

medida que o tempo foi passando, a vida e as queixas continuaram quase as mesmas, e apenas uma única coisa foi acrescentada.

Papel.

Intermináveis relatórios sobre o onde, o como e o porquê de determinada ocorrência. Um simples caso de lixo colocado em local proibido exigia que o material em questão fosse revirado em busca do culpado (sempre havia pistas, como envelopes ou tickets de avião), a área fotografada, um mapa desenhado cuidadosamente, 1 7 1

a identifi cação da pessoa, a remessa de uma intimação amigável, a segunda remessa de algo menos gentil, a entrada na justiça caso o transgressor achasse tudo aquilo uma bobagem interminável, os depoimentos, as sentenças, e os recursos feitos por advogados competentes. Enfi m, dois anos podiam se passar até que aquele processo fosse defi nitivamente arquivado, sem nenhuma conseqüência para ambos os lados.

Crimes de morte eram raríssimos. As estatísticas mais recentes mostravam que grande parte das ocorrências em Cannes era ligada a confl itos de meninos ricos em boates caras, roubos de apartamentos que eram usados apenas no verão, infrações de trânsito, denúncias de trabalho clandestino, e confl itos de casais. Claro, devia estar muito contente com isso — em um mundo cada vez mais conturbado, o Sul da França era um oásis de paz, mesmo na época em que milhares de estrangeiros invadiam o local para aproveitar a praia, ou para vender e comprar fi lmes. No ano anterior fora encarregado de quatro casos de suicídio (o que signifi cava seis ou sete quilos de papéis a serem datilografados, preenchidos, assinados), e duas — duas únicas agressões seguidas de morte.

Em apenas algumas horas, as estatísticas de um ano inteiro tinham sido preenchidas. O que estava acontecendo?

Os guarda-costas tinham desaparecido antes mesmo de dar um depoimento — e Savoy anotou mentalmente que assim que tiver tempo fará uma reprimenda por escrito aos policiais encarregados do caso. Afi nal de contas, deixaram escapar as únicas verdadeiras testemunhas do que acontecera — porque a mulher que estava na sala de espera não sabia absolutamente de nada. Em menos de dois minutos entendeu que ela estava longe no momento em que o veneno havia sido disparado, e tudo o que queria era aproveitar-se da situação para chegar perto do famoso distribuidor.

Tudo que lhe sobra, portanto, é ler mais papel.

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Está sentado na sala de espera do hospital, com dois relatórios à sua frente.

O primeiro, escrito pelo médico de plantão, e composto apenas de duas folhas com aborrecidos detalhes técnicos, analisava os danos no organismo do homem que agora se encontra na unidade de terapia intensiva do hospitaclass="underline" envenenamento através de perfuração da parte lombar esquerda, causado por substância desconhecida, mas que neste momento está sendo pesquisada no laboratório, usando-se a agulha que havia injetado a substância tóxica na corrente sanguí-

nea. O único agente classifi cado na lista de venenos capazes de uma reação tão violenta e rápida é a estricnina, mas esta provoca convulsões e espasmos no corpo. Pelo que os seguranças disseram, e que foi confi rmado tanto pelos paramédicos como pela mulher na sala de espera, tal sintoma não fora detectado. Pelo contrário, observou-se uma paralisia imediata dos músculos, com o tórax tombando para a frente, e a vítima podendo ser carregada do local sem chamar a atenção dos demais convidados da festa.

O outro relatório, muito mais extenso, vinha do EPCTF (Euro-pean Police Chiefs Task Force — Força Européia Especial de Chefes de Polícia) e da Europol (Polícia Européia), que acompanhava cada passo da vítima desde que pisara em solo europeu. Os agentes se revezavam, mas na hora do incidente estava sendo vigiado por um agente negro, vindo de Guadalupe, mas com aspecto jamaicano.

“E mesmo assim, a pessoa encarregada de prestar atenção não viu nada. Ou melhor: no momento em que tudo aconteceu teve sua visão parcialmente interrompida por alguém que passava com um copo de suco de abacaxi nas mãos.”

Embora a vítima não tivesse qualquer passagem pela polícia, e fosse conhecida no meio cinematográfi co como um dos mais revolucionários distribuidores de fi lmes da atualidade, seus negócios eram apenas uma fachada para algo muito mais rentável. Segundo a Europol, Javits Wild era um produtor de segunda categoria na indústria 1 7 3

cinematográfi ca até cinco anos atrás, quando foi contatado por um cartel especializado na distribuição de cocaína em território americano para transformar dinheiro sujo em dinheiro limpo.

“Começa a fi car interessante.”

Pela primeira vez, Savoy gosta do que lê. Talvez tenha em mãos um caso importante, longe da rotina dos problemas com o lixo, das brigas de casais, dos roubos de apartamento de temporada, e dos dois assassinatos por ano.

Conhece o mecanismo. Sabe do que estão falando ali naquele relatório. Os trafi cantes ganham fortunas na venda do produto, mas como não podem provar sua origem, jamais conseguem abrir contas bancárias, comprar apartamentos, carros ou jóias, fazer investimentos, transferir grandes quantias de um país para outro — porque o governo vai perguntar: “Mas como conseguiu fi car tão rico? Onde ganhou tudo isso?”.