— ...e não encontrar outro prazer em sua vida a não ser perseguir aquilo que se deseja. Não ter diversões. Achar tudo o mais aborrecido. Terminar por destruir sua família.
A mulher olhou espantada para ele. Sua bebedeira parecia ter desaparecido.
— Quem é o senhor? Como é capaz de ler o que estou pensando?
— Estava pensando justamente nisso quando a senhora entrou. E
pode continuar me chamando de você. Penso que posso ajudá-la.
— Ninguém pode me ajudar. A única pessoa que podia está neste momento na unidade de terapia intensiva do hospital. E pelo pouco que pude saber antes que a polícia chegasse, não deve sair com vida.
MEU DEUS!
Ela termina de beber o que resta no copo. Igor faz um sinal para o garçom. Ele o ignora, e vai servir outra mesa.
— Sempre em minha vida preferi um elogio cínico a uma crítica construtiva. Por favor, diga que sou bela, que sou capaz.
Igor ri.
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— Como sabe que não posso ajudá-la?
— O senhor por acaso é distribuidor de fi lmes? Tem contatos no mundo inteiro, salas de cinema espalhadas pelo planeta?
Talvez ambos estivessem pensando na mesma pessoa. Se fosse o caso, e se aquilo fosse uma armadilha, era tarde demais para fugir
— devia estar sendo vigiado, e assim que se levantasse seria preso.
Sente o estômago contrair-se, mas por que está com medo? Horas antes tentara, sem êxito, entregar-se à polícia. Havia escolhido o martírio, oferecera sua liberdade como sacrifício, mas tal oferta fora rejeitada por Deus.
E agora, os Céus haviam reconsiderado sua decisão.
Precisa imaginar como se defender da cena que virá a seguir: o suspeito é identifi cado, uma mulher fi ngindo-se de bêbada vai na frente, confi rma os dados. Depois, com toda discrição, um homem entra e pede que o acompanhe apenas para uma pequena conversa.
Tal homem é um policial. Igor tem neste momento uma espécie de caneta no paletó, que não desperta nenhuma suspeita — mas a Beretta o denunciará. Vê sua vida inteira desfi lar diante dos olhos.
Pode usar a pistola e reagir? O policial que deve aparecer assim que a identifi cação for confi rmada deve ter outros amigos observan-do a cena, e será morto antes que possa fazer alguma coisa. Por outro lado, não veio aqui para matar inocentes de maneira bárbara e indis-criminada; tem uma missão, e suas vítimas — ou mártires do amor, como prefere chamar — estão servindo a um propósito maior.
— Não sou distribuidor — responde. — Não tenho absolutamente nada que ver com o mundo do cinema, da moda, do glamour.
Trabalho em telecomunicações.
— Ótimo — disse a mulher. — Deve ter dinheiro. Deve ter tido alguns sonhos na vida, e sabe do que estou falando.
Estava perdendo o rumo da conversa. Torna a fazer um sinal para outro garçom. Desta vez foi atendido, e pede duas xícaras de chá.
— O senhor não vê que estou tomando uísque?
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— Sim. Mas como disse antes, acho que posso ajudá-la. E para isso precisa estar sóbria, consciente de cada passo.
Maureen mudou de tom. Desde que aquele estranho conseguira adivinhar o que estava pensando, parecia que estava sendo devolvida à realidade. Sim, quem sabe poderia mesmo ajudá-la? Há muitos anos ninguém tentava seduzi-la dizendo uma das mais famosas frases do meio: “Conheço gente infl uente.” Não há nada melhor para mudar o estado de espírito de uma mulher do que saber que é desejada por al-guém do sexo oposto. Teve um impulso de levantar-se e ir ao banheiro, olhar-se no espelho, retocar sua maquiagem. Mas isso podia esperar; antes precisava enviar claros sinais de que estava interessada.
Sim, precisava de companhia, estava aberta às surpresas do destino — quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. Por que, de todas as mesas naquele terraço, esta era a única ocupada por uma pessoa? Havia um sentido, um sinal oculto: os dois precisavam se encontrar.
Riu de si mesma. No seu atual estado de desespero qualquer coisa era um sinal, uma saída, uma boa notícia.
— Em primeiro lugar, preciso saber do que está precisando — diz o homem.
— Ajuda. Tenho um fi lme pronto, com um elenco de primeira linha, que deveria ser distribuído por uma das poucas pessoas que ainda acreditam no talento de alguém que não pertence ao sistema.
Ia encontrar-me com um distribuidor amanhã. Eu estava no mesmo almoço com ele, e de repente notei que passou mal.
Igor começa a relaxar. Talvez fosse verdade, já que no mundo real as coisas são mais absurdas que nos livros de fi cção.
— Saí, descobri o hospital para onde tinha sido levado, e fui até lá. No caminho, imaginei o que iria dizer: que era sua amiga, e está-
vamos prontos para trabalhar juntos. Jamais havia conversado com ele, mas tenho certeza de que alguém em uma situação crítica sente-se confortável quando uma pessoa, qualquer pessoa está por perto.
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“Ou seja, ia aproveitar a tragédia alheia em benefício próprio”, pensou Igor.
São todos iguais. Absolutamente iguais.
— E o que é exatamente um elenco de primeira linha?
— Gostaria de ir ao banheiro, se me der licença.
Igor levanta-se educadamente, coloca os óculos escuros, e enquanto ela se afasta procura aparentar toda a calma possível. Toma seu chá, enquanto os olhos percorrem incessantemente o terraço.
Em princípio não há nenhuma ameaça à vista, mas de qualquer maneira é melhor abandonar o local assim que a mulher voltar.
Maureen fi ca impressionada com o cavalheirismo do seu novo amigo. Há anos não via alguém comportar-se segundo as normas de etiqueta que seus pais e mães haviam ensinado. Ao sair do terraço, notou que moças jovens, bonitas, que estavam na mesa ao lado e com toda certeza tinham escutado parte da conversa, olhavam para ele e sorriam. Viu que ele colocara seus óculos escuros — talvez para poder observar as mulheres sem que elas se dessem conta. Talvez, quando voltasse, estariam tomando chá juntos.
Mas a vida é assim: não há nada do que se queixar, e nada que esperar.
Olha seu rosto no espelho; como é que um homem poderia se interessar por ela? Devia voltar realmente à realidade, como ele sugerira. Tem os olhos cansados, vazios, estava exausta como todos aqueles que participavam de um festival de cinema, e mesmo assim sabia que precisava continuar lutando. Cannes ainda não havia terminado, Javits poderia recuperar-se ou outra pessoa apareceria representando sua distribuidora. Tinha entradas para assistir aos fi lmes dos outros, convite para a festa da revista Gala — uma das mais importantes da França —, e podia aproveitar o tempo disponível para ver o que os produtores e diretores independentes na Europa fazem para mostrar seu trabalho. Precisava se recompor rapidamente.
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Quanto ao homem bonito, melhor deixar suas ilusões de lado.
Volta para a mesa convencida de que irá encontrar as duas moças sentadas ali, mas o homem está só. De novo levanta-se educadamente, e puxa sua cadeira para que possa sentar-se.
— Não me apresentei. Meu nome é Maureen.
— Igor. Muito prazer. Mas interrompemos a conversa quando você dizia que tinha o elenco ideal.
Agora podia aproveitar para dar uma alfi netada nas moças da mesa ao lado. Falou um pouco mais alto do que de costume.
— Aqui em Cannes, ou em qualquer outro festival, todos os anos atrizes são descobertas, e todos os anos grandes atrizes perdem um grande papel — porque a indústria acha que se tornaram velhas demais, embora ainda sejam jovens e cheias de entusiasmo. Entre aquelas que são descobertas (“tomara que as meninas ao lado estejam escutando”), algumas tomam o caminho do puro glamour. Embora ganhem pouco nos fi lmes que fazem — todos os diretores sabem disso, e se aproveitam ao máximo — investem na coisa mais errada do mundo.
— Ou seja...
— A própria beleza. Tornam-se celebridades, começam a cobrar para aparecer em festas, são chamadas para anúncios, para recomendar produtos. Terminam conhecendo os homens mais poderosos e os atores mais desejados do planeta. Ganham uma quantidade imensa de dinheiro — porque são jovens, bonitas, e seus agentes conseguem uma quantidade enorme de contratos.