Ele torce a parte superior do objeto. Com a delicadeza de um mestre que retoca sua obra-prima, retira a tampa: na verdade, não era exatamente uma tampa, mas uma espécie de cabeça no que parecia ser um imenso prego. Os raios do sol refl etem na parte metálica.
— Não deixariam você passar em um aeroporto carregando isso na valise — ela riu.
— Claro que não.
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Maureen entendeu que estava com um homem cortês, bonito, provavelmente rico, mas também capaz de protegê-la de todos os perigos. Embora não soubesse as estatísticas sobre crimes na cidade, era bom sempre pensar em tudo.
Para isso os homens foram feitos: para pensar em tudo.
— Evidente que, para poder usar isso, tenho que saber exatamente onde é necessário aplicar o golpe. Mesmo sendo feita de aço, é frágil por causa do seu diâmetro, e pequena demais para causar grandes danos. Se não houver precisão, não haverá resultado.
Ele levantou a lâmina e colocou-a na altura da orelha de Maureen.
Sua primeira reação foi de medo, logo substituído por excitação.
— Aqui seria um dos lugares ideais, por exemplo. Um pouco acima, e os ossos do crânio protegem o golpe. Um pouco abaixo, a veia do pescoço é atingida, a pessoa pode morrer, mas terá condições de reagir. Se estiver armada, atiraria de volta, já que estou muito perto.
A lâmina desceu lentamente pelo seu corpo. Passou sobre o seu seio, e Maureen entendeu: estava querendo impressioná-la e excitá-
la ao mesmo tempo.
— Não pensei que alguém que trabalha em telecomunicações soubesse tanto a respeito. Mas pelo que me diz, matar com isso é bastante complicado.
Foi a maneira de dizer: “Estou interessada no que está me contando. Você me interessa. Daqui a pouco, por favor, segure minha mão, para que possamos ver o pôr-do-sol juntos.”
A lâmina deslizou pelo seio, mas não parou ali. Mesmo assim, aquilo foi sufi ciente para deixá-la excitada. Finalmente, parou um pouco debaixo do seu braço.
— Aqui eu estou na altura do seu coração. Em torno dele, existem costelas, uma proteção natural. Se estivéssemos brigando, seria impossível causar qualquer dano com esta pequena arma. Ela com certeza se chocaria com uma das costelas, e mesmo que penetrasse no corpo, o sangramento provocado pela ferida não seria sufi ciente 2 0 0
para diminuir a força do inimigo. Talvez nem mesmo sentisse o golpe. Mas neste lugar aqui, ela é mortal.
O que estava ela fazendo ali, em um lugar isolado, com um completo estranho, que conversava sobre um assunto tão macabro? Neste momento sentiu uma espécie de choque elétrico que a deixou paralisada — a mão havia empurrado a lâmina para dentro do seu corpo. Pensou que estava sendo asfi xiada, queria respirar, mas logo perdeu a consciência.
Igor a abraçou — como fi zera com a primeira vítima. Mas desta vez ajeitou seu corpo para que permanecesse sentada. Seu único gesto foi colocar luvas, pegar sua cabeça, e fazer com que pendesse para a frente.
Se alguém resolvesse se aventurar naquele canto da praia, tudo o que veria era uma mulher dormindo — exausta de tanto procurar produtores e distribuidores no festival de cinema.
O rapaz atrás de um velho armazém, que adorava ir ali e fi car escondido, esperando que os casais se aproximassem e trocassem carí-
cias para masturbar-se, agora telefonava como um louco para a polí-
cia. Tinha assistido a tudo. No início achou que era uma brincadeira, mas o homem havia enfi ado realmente o estilete na mulher! Devia esperar que os guardas chegassem, antes de sair do seu esconderijo; aquele louco podia voltar a qualquer momento e estaria perdido.
Igor joga a lâmina no mar, e toma o caminho rumo ao hotel.
Desta vez, sua própria vítima escolhera a morte. Estava sozinho no terraço do hotel, pensando no que fazer, voltando ao passado, quando ela se aproximara. Não imaginou que aceitaria caminhar com um desconhecido até um canto isolado — mas ela seguira adiante. Teve todas as possibilidades de fugir quando começou a mostrar-lhe os diferentes locais onde um pequeno objeto pode causar um ferimento mortal, e ela continuou ali.
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Um carro de polícia passa por ele, usando a pista interditada para o público. Resolve acompanhá-lo com os olhos e, para sua surpresa, nota que entra justamente no píer que ninguém, absolutamente ninguém parece freqüentar durante o período do festival. Estivera ali de manhã, e permanecia tão deserto como o havia encontrado na parte da tarde, embora fosse o melhor lugar para assistir a um pôr-do-sol.
Poucos segundos depois, uma ambulância passa com sua sirene ensurdecedora e suas luzes acesas. Toma o mesmo rumo.
Continua a andar, certo de uma coisa: alguém assistira ao crime.
Como iria descrevê-lo? Um homem de cabelos grisalhos, com calça jeans, camisa branca, e paletó negro. A possível testemunha faria um retrato falado, e isso iria não apenas demorar algum tempo, como acabaria levando à conclusão que existiam dezenas, talvez milhares de pessoas parecidas com ele.
Desde que se apresentara ao guarda e fora mandado de volta ao hotel, estava certo de que ninguém seria mais capaz de interromper sua missão. As dúvidas eram outras: será que Ewa merecia os sacrifícios que estava oferecendo ao universo? Chegara à cidade convencido que sim. Agora, algo diferente começava a cruzar sua alma: o espírito da pequena vendedora de artesanato, com suas sobrancelhas grossas e seu sorriso inocente.
“Somos todos parte da centelha divina”, ela parecia dizer. “Temos todos um propósito na criação, chamado Amor. Mas isso não deve ser concentrado em apenas uma pessoa — ele está espalhado pelo mundo, esperando ser descoberto. Acorde, desperte para esse amor. O que passou não deve voltar. O que chegar precisa ser reconhecido.”
Luta contra esta idéia; só descobrimos que um plano está errado quando vamos até as últimas conseqüências. Ou quando Deus mise-ricordioso nos guia em outra direção.
Olha para o seu relógio: ainda tem mais 12 horas na cidade, tempo sufi ciente antes de tomar seu avião com a mulher que ama e voltar para...
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...para onde? Seu trabalho em Moscou depois de tudo que havia experimentado, sofrido, refl etido, planejado? Ou fi nalmente renascer através de todas as suas vítimas, escolher a liberdade absoluta, descobrir a pessoa que não sabia quem era, e a partir deste momento fazer exatamente as coisas que sonhava fazer quando ainda estava com Ewa?
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4:34 PM
Jasmine fi ca olhando o mar enquanto fuma um cigarro inteiro sem pensar em nada. Nestes momentos sente uma conexão profunda com o infi nito, como se não fosse ela quem estivesse ali, mas algo mais poderoso, capaz de coisas extraordinárias.
Lembra-se de um velho conto que lera não sabia mais onde. Nasrudin apareceu na corte com um magnífi co turbante, pedindo dinheiro para caridade.
“Você veio me pedir dinheiro, e está usando um ornamento muito caro na cabeça. Quanto custou esta peça maravilhosa?” — perguntou o soberano.
“Foi uma doação de alguém muito rico. E seu preço, pelo que pude apurar, são quinhentas moedas de ouro” — respondeu o sábio sufi .
O ministro sussurrou: “É mentira. Nenhum turbante custa esta fortuna.”
Nasrudin insistiu:
“Não vim aqui só para pedir, vim também para negociar. Sei que, em todo o mundo, apenas um soberano seria capaz de comprá-lo por seiscentas moedas, para que eu pudesse dar o lucro aos pobres, e assim aumentar a doação que precisa ser feita.”
O sultão, lisonjeado, pagou o que Nasrudin pedia. Na saída, o sábio comenta com o ministro:
“Você pode conhecer muito bem o valor de um turbante, mas sou eu quem conhece até onde a vaidade pode levar um homem.”
Era essa a realidade em torno de si. Não tinha nada contra a sua profi ssão, não julgava as pessoas pelos seus desejos, mas estava consciente do que é realmente importante na vida. E gostaria de permanecer com os pés na terra, embora as tentações estivessem por todos os cantos.