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Alguém abre a porta, diz que falta apenas meia hora para entrarem na passarela. Aquilo que geralmente era a pior parte do dia, o longo período de tédio que precede o momento do desfi le, está chegando ao fi nal. As moças deixavam seus iPods e telefones celulares de lado, os maquiadores retocam os detalhes, os cabeleireiros refazem as mechas que haviam saído de lugar.
Jasmine senta-se diante do espelho do camarim e deixa que as pessoas façam seu trabalho.
— Não fi que nervosa só porque é Cannes — diz a maquiadora.
— Não estou nervosa.
Por que haveria de estar? Ao contrário, cada vez que pisava a passarela sentia uma espécie de êxtase, a famosa injeção de adrenalina na veia. A maquiadora parece disposta a conversar, comenta sobre as rugas das celebridades que passaram por suas mãos, promove um novo creme, diz que está cansada de tudo aquilo, pergunta se tem algum convite extra para uma festa. Jasmine ouve tudo com infi nita paciência, porque seu pensamento está nas ruas de Antuérpia, no dia em que decidira procurar os fotógrafos.
Passara por uma pequena difi culdade, mas tudo dera certo no fi nal.
Assim seria hoje. Assim fora então, quando — junto com a mãe, que queria ver a fi lha recuperar-se rapidamente da sua depressão e terminara aceitando acompanhá-la — tocou a campainha do fotó-
grafo que a havia abordado na rua. A porta abria para uma pequena sala, com uma mesa transparente coberta de negativos de fotos, outra mesa com um computador, e uma espécie de prancheta de arquiteto cheia de papéis. O fotógrafo estava acompanhado de uma senhora de aproximadamente 40 anos, que a olhou de alto a baixo e sorriu. Apresentou-se como coordenadora de eventos, e os quatro sentaram-se.
— Eu tenho certeza que sua fi lha tem um grande futuro como modelo — disse a mulher.
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— Estou aqui apenas para acompanhá-la — respondeu a mãe.
— Se tiver qualquer coisa a dizer, dirija-se diretamente a ela.
A mulher levou alguns segundos para recuperar-se. Pegou uma fi cha, começou a anotar detalhes e medidas, enquanto comentava:
— Evidente que Cristina não é um bom nome. Muito comum. A primeira coisa que precisamos é mudar isso.
“Cristina não era um bom nome por outras razões”, pensava ela.
Porque pertencia a uma moça que fi cara inválida no dia em que tes-temunhara um assassinato, e morrera quando negou o que os seus olhos teimavam em esquecer. Quando resolveu mudar tudo, come-
çou pela maneira com que sempre lhe chamavam desde criança. Precisava mudar tudo, absolutamente tudo. Portanto, tinha a resposta na ponta da língua:
— Jasmine Tiger. Doçura de uma fl or, perigo de um animal selvagem.
A mulher pareceu gostar.
— A carreira de modelo não é fácil, e você tem sorte de ter sido escolhida para dar um primeiro passo. Claro, é necessário acertar muitos pontos, mas estamos aqui justamente para ajudá-la a chegar aonde deseja. Faremos suas fotos e enviaremos para as agências especializadas. Você precisará também de um composite.
Ficou esperando que Cristina perguntasse: “O que é um composite?” Mas não houve pergunta. De novo, a mulher se recompôs rapidamente.
— Composite, como imagino que você deve saber, é uma folha em papel especial, com sua melhor foto e suas medidas de um lado.
Atrás, mais fotos — em diversas situações. De biquíni, de estudante, eventualmente uma apenas mostrando o rosto, outra com um pouco mais de maquiagem, para que possa também ser selecionada no caso de desejarem alguém que pareça mais velho. Seus seios...
Outro momento de silêncio.
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— ...seus seios talvez sejam um pouco além das medidas conven-cionais de uma modelo.
Virou-se para o fotógrafo:
— Precisaremos disfarçar isso. Tome nota.
O fotógrafo tomou nota. Cristina — agora rapidamente transformando-se em Jasmine Tiger — pensava: “Mas na hora de me chama-rem, eles vão descobrir que tenho seios maiores do que imaginam!”
A mulher pegou uma linda pasta de couro, e tirou uma espécie de lista.
— Precisaremos chamar um maquiador. Um cabeleireiro. Você não tem a menor experiência em passarela, não é verdade?
— Nenhuma.
— Pois ali não se caminha como se anda na rua. Se fi zer isso, terminará caindo por causa da velocidade e dos saltos altos. Os pés devem ser colocados um diante do outro, como um gato. Não sorria jamais. E sobretudo, a postura é fundamental.
Ela fez três marcas ao lado da lista no papel.
— Será necessário alugar algumas roupas.
Mais uma marca.
— Mas penso que no momento isso é tudo.
Levou de novo a mão à bolsa elegante, e retirou uma calculadora.
Pegou a lista, anotou alguns números, somou-os. Ninguém na sala ousava pronunciar uma palavra.
— Em torno de 2 mil euros, eu acho. Não vamos contar as fotos, porque Yasser — ela virou-se para o fotógrafo — é caríssimo, mas resolveu fazer de graça, desde que você permita que use o material.
Podemos convocar o maquiador e o cabeleireiro para amanhã de manhã, e eu vou entrar em contato com o curso, para ver se arranjo uma vaga. Com certeza irei conseguir. Da mesma maneira estou certa que você, ao investir em si mesma, está criando novas possibilidades para o seu futuro, e em breve esta despesa será coberta.
— A senhora está dizendo que eu devo pagar?
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De novo a “coordenadora de eventos” pareceu desconcertada.
Geralmente, as moças que chegavam ali deviam estar loucas para realizar o sonho de toda uma geração; querem ser as mulheres mais desejadas do planeta, e jamais fazem perguntas indelicadas, que podem deixar os outros constrangidos.
— Escute, querida Cristina…
— Jasmine. A partir do momento que eu cruzei aquela porta, me transformei em Jasmine.
O telefone tocou. O fotógrafo tirou-o do bolso, e dirigiu-se para o fundo da sala, até então completamente às escuras. Quando abriu uma das cortinas, Jasmine pôde ver uma parede coberta de negro, tripés com fl ashes, caixas com luzes que brilhavam, e vários focos de luz no teto.
— Escute, querida Jasmine, há milhares, milhões de pessoas que gostariam de estar em sua posição. Você foi selecionada por um dos mais importantes fotógrafos da cidade, terá os melhores profi ssionais para ajudá-la, e eu me ocuparei pessoalmente de dirigir sua carreira. Entretanto, como qualquer outra coisa na vida, é necessário acreditar que pode vencer, e investir para que isso aconteça. Sei que é bela o sufi ciente para ter muito sucesso, mas isso não basta nesse mundo extremamente competitivo. É preciso também ser a melhor, e isso custa dinheiro, pelo menos no início.
— Mas se você acha que eu tenho todas essas qualidades, porque não investe o seu dinheiro?
— Farei isso mais adiante. No momento, precisamos ver qual o seu grau de comprometimento. Quero ter certeza de que deseja realmente ser uma profi ssional, ou se é mais uma menina deslumbra-da com a possibilidade de viajar, conhecer o mundo, encontrar um marido rico.
O tom da mulher agora era severo. O fotógrafo voltou do estúdio.
— É o maquiador ao telefone. Quer saber a que horas deve chegar amanhã.
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— Se isso realmente for necessário, eu consigo arranjar a quantia… — disse a mãe.
Mas Jasmine já estava se levantando, e andava direto para a porta, sem apertar a mão dos dois.
— Muito obrigada. Não tenho esse dinheiro. E mesmo que tivesse, usaria em outra coisa.
— Mas é o seu futuro!
— Justamente. É o meu futuro, e não o seu.
Saiu aos prantos. Primeiro tinha ido a uma boutique de luxo e não apenas haviam lhe tratado mal, como insinuaram que mentira ao dizer que conhecia o dono. Agora imaginava que iria começar uma nova vida, descobrira um nome perfeito para si mesma, e precisava de 2 mil euros para dar o primeiro passo!