Mãe e fi lha voltaram para casa, sem trocar uma palavra. O telefone tocou várias vezes; ela olhava o número, e tornava a guardá-lo no bolso.
— Por que não atende? Não temos um outro encontro esta tarde?
— Pois trata-se exatamente disso. Não temos 2 mil euros.
A mãe segurou-a pelos ombros. Sabia o estado frágil da fi lha, e precisava fazer alguma coisa.
— Sim, nós temos. Eu trabalho todos os dias desde que seu pai morreu, e nós temos 2 mil euros. Temos mais, se for necessário. Uma faxineira aqui na Europa ganha bem, porque ninguém gosta de estar limpando a sujeira dos outros. E estamos falando do seu futuro. Não vamos voltar para casa.
O telefone tocou mais uma vez. Jasmine voltara a ser Cristina, e obedeceu ao que sua mãe exigia. Do outro lado da linha a mulher identifi cou-se, disse que estaria duas horas atrasada por causa de outro compromisso, e pedia desculpas.
— Não tem importância — respondeu Cristina. — Mas antes que a senhora perca o seu tempo, gostaria de saber quanto vai custar o trabalho.
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— Quanto vai custar?
— Sim. Acabo de vir de um outro encontro, e me cobraram 2 mil euros pelas fotos, maquiagem…
A mulher do outro lado da linha riu.
— Não vai custar nada. Conheço o truque, e falamos sobre isso quando você chegar aqui.
O estúdio era parecido, mas a conversa foi diferente. A fotógrafa queria saber por que seu olhar parecia mais triste agora — pelo visto ainda se lembrava do primeiro encontro. Cristina comentou o que acontecera naquela manhã; a mulher explicou que era algo absolutamente normal, embora hoje em dia estivesse mais controlado pelas autoridades. Naquele exato momento, em muitos lugares do mundo, moças relativamente bonitas estavam sendo convidadas a mostrar “o potencial” de sua beleza, pagando caro para isso. Sob o pretexto de procurar novos talentos, alugavam quartos de hotéis de luxo, coloca-vam aparelhos de fotografi a, prometiam pelo menos um desfi le durante o ano, ou “o dinheiro de volta”, cobravam uma fortuna pelos retratos, chamavam profi ssionais falidos para atuar como maquiadores e cabeleireiros, sugeriam escolas de modelo, e muitas vezes desapareciam sem deixar rastros. Cristina tivera a sorte de ir até um estúdio de verdade, mas fora inteligente o bastante para recusar a oferta.
— É parte da vaidade humana, e não existe nada de errado nisso
— desde que você saiba se defender, claro. Acontece não apenas na moda, mas em muitas outras áreas: escritores que publicam seus pró-
prios trabalhos, pintores que patrocinam suas exposições, cineastas que se endividam para disputar um lugar ao sol com os grandes es-túdios, meninas de sua idade que largam tudo e vão trabalhar como garçonetes em grandes cidades, na esperança que algum dia um produtor descubra seu talento e as convide para o estrelato.
Não, não ia fazer as fotos agora. Precisava conhecê-la melhor, porque apertar o botão da máquina é a última coisa em um longo 2 1 1
processo, que começa por desvendar a alma da pessoa. Marcaram um encontro no dia seguinte, conversaram mais.
— Você precisa escolher um nome.
— Jasmine Tiger.
Sim, o desejo havia voltado.
A fotógrafa a convidou para um fi nal de semana em uma praia na fronteira da Holanda, e ali passaram mais de oito horas por dia fazendo todos os tipos de experiência diante das lentes da câmera.
Era preciso expressar com o rosto as emoções que certas palavras despertavam: “fogo!” ou “sedução!” ou “água!”. Mostrar o lado bom e o lado ruim da própria alma. Olhar para a frente, para o lado, para baixo, para o infi nito. Imaginar gaivotas e demônios. Sentir-se atacada por homens mais velhos, abandonada em um banheiro de bar, violentada por um ou mais homens, pecadora e santa, perversa e inocente.
Fizeram fotos ao ar livre — seu corpo parecia congelar de frio, mas ela era capaz de reagir a cada estímulo, obedecer cada sugestão.
Usaram um pequeno estúdio que havia sido montado em um dos quartos, onde diferentes músicas eram tocadas, e a iluminação modifi cada a cada instante. Jasmine se maquiava, a fotógrafa cuidava de arranjar seu cabelo.
— Estou bem? Por que está gastando seu tempo comigo?
— Conversamos mais tarde.
A mulher passava as noites olhando o trabalho, refl etindo, ano-tando coisas. Nunca dizia se estava contente ou decepcionada com os resultados.
Só na segunda-feira de manhã, Jasmine (Cristina estava defi nitivamente morta àquela altura) escutou uma opinião. Estavam na esta-
ção de trem de Bruxelas, aguardando a conexão para Antuérpia:
— Você é a melhor.
— Não é verdade. — A mulher a olhou espantada.
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— Sim, você é a melhor. Trabalho nesta área há vinte anos, já fotografei uma infi nidade de pessoas, trabalhei com modelos profi ssionais e artistas de cinema. Gente com experiência; mas nenhum, absolutamente nenhum mostrou sua capacidade de expressar sentimentos como você o fez.
“Sabe como isso se chama? Talento. Para certas categorias de profi ssionais, é fácil medi-lo: diretores que são capazes de pegar uma empresa à beira da falência e torná-la lucrativa. Esportistas que quebram recordes. Artistas que foram capazes de sobreviver no mínimo duas gerações através de suas obras. Mas para uma modelo, como eu posso dizer e garantir isso? Porque sou uma profi ssional.
Você conseguiu mostrar seus anjos e demônios através da lente de uma câmera, e isso não é fácil. Não estou falando de jovens que gostam de se vestir de vampiros e freqüentar as festas góticas. Não estou falando de moças que fazem um ar inocente e procuram despertar a pedofi lia escondida nos homens. Estou falando de verdadeiros de-mônios, e de verdadeiros anjos.”
As pessoas andavam de um lado para o outro na estação. Jasmine olhou o horário do trem, sugeriu que fossem até o lado de fora — estava louca para fumar um cigarro e ali era proibido. Pensava se devia ou não dizer o que lhe passava pela alma naquele momento.
— Pode ser que eu tenha talento, mas se esse for o caso, eu só consegui demostrá-lo por uma única razão. Por sinal, durante os dias que passamos juntos, você quase não falou de sua vida privada, e tampouco perguntou sobre a minha. Quer que ajude com a bagagem? Fotografi a devia ser uma profi ssão masculina: sempre há muito equipamento para transportar.
A mulher riu.
— Não tenho nada de especial para dizer, exceto que adoro meu trabalho. Chego aos 38 anos divorciada, sem fi lhos, com uma sé-
rie de contatos que me permitem viver confortavelmente, mas sem 2 1 3
grandes luxos. Por sinal, gostaria de acrescentar algo ao que disse: caso tudo corra certo, você jamais, JAMAIS irá se comportar como uma pessoa que depende de sua profi ssão para sobreviver, mesmo que seja o caso.
“Se não seguir meu conselho, será facilmente manipulada pelo sistema. Claro que usarei suas fotos, e ganharei dinheiro com elas. Mas a partir de agora, sugiro que contrate uma agente profi ssional.”
Acendeu outro cigarro; era agora ou nunca.
— Sabe por que consegui mostrar meu talento? Por causa de algo que jamais imaginei que fosse acontecer em minha vida: apaixonar-me por uma mulher. Que desejaria ter ao meu lado, guiando-me através dos passos que precisarei dar. Uma mulher que, com sua doçura e seu rigor, conseguiu invadir minha alma soltando o que havia de pior e de melhor nos subterrâneos do espírito. Não fez isso através de longas aulas de meditação, ou com técnicas de psicanálise
— como minha mãe desejaria e insistia que fosse. Usou...
Deu uma pausa. Estava com medo, mas precisava continuar: não tinha absolutamente mais nada a perder.
— Usou uma máquina fotográfi ca.
O tempo na estação de trem fi cou em suspenso. As pessoas não caminhavam mais, os ruídos desapareceram, o vento já não soprava mais, a fumaça do cigarro congelou-se no ar, todas as luzes se apa-garam — exceto as de dois pares de olhos que brilhavam mais que nunca, fi xos um no outro.