SUBIR OS DEGRAUS!
A expressão mágica!
O vestido não fi cou bem. A mulher e o andrógino começam a fi car nervosos. A mulher pede que traga duas, três opções diferentes, porque ela irá subir os degraus com a Celebridade, que a esta altura já está pronta.
“Subir os degraus” com a Celebridade! Será que estava sonhando?
Decidem por um vestido longo, dourado, grudado ao corpo, com um grande decote até a cintura. Em cima, na altura dos seios, uma corrente de ouro faz com que a abertura não vá além do que a imaginação humana pode suportar.
A mulher está nervosa. O andrógino tornou a sair e volta com uma costureira, que dá os retoques necessários na bainha. Se pudesse dizer qualquer coisa naquele minuto, seria para que parassem de fa-2 2 0
zer isso: costurar uma roupa no corpo signifi ca que seu destino está também sendo costurado e interrompido. Mas isso não é hora para superstições — e muitas atrizes famosas devem enfrentar o mesmo tipo de situação todos os dias, sem que nada de ruim lhes aconteça.
Chega uma terceira pessoa com uma mala imensa. Vai até um canto do gigantesco quarto e começa a desmontá-la; é uma espécie de estúdio portátil de maquiagem, incluindo um espelho cercado de luzes. O andrógino está diante dela, ajoelhado como uma Madalena arrependida, experimentando sapato atrás de sapato.
Cinderela! Que daqui a pouco vai se encontrar com o Príncipe Encantado, e “subir os degraus” com ele!
— Este está bom — diz a mulher.
O andrógino começa a colocar os outros sapatos de volta em suas caixas.
— Dispa-se de novo. Terminaremos os retoques do vestido enquanto preparam seu cabelo e maquiagem.
Que bom, as costuras no corpo terminaram. Seu destino está aberto de novo.
Vestida apenas de calcinha, é conduzida até o banheiro. Ali, um kit portátil de lavar e secar cabelos já está instalado, um homem de cabe-
ça raspada a espera, pede que se sente e coloque sua cabeça para trás, em uma espécie de bacia de aço. Usa um chuveiro manual adaptado à torneira da pia para lavar os seus cabelos, e como todos os outros ali parece estar à beira de um ataque de nervos. Reclama do ruído lá fora; precisa de um lugar tranqüilo para poder trabalhar direito, mas ninguém lhe dá ouvidos. Além do mais, jamais tem tempo sufi ciente para fazer o que deseja — tudo é sempre em cima da hora.
— Ninguém consegue entender a gigantesca responsabilidade que pesa sobre meus ombros.
Não está falando para ela, mas para si mesmo. Continua:
— Quando você sobe os degraus, você acha que estão vendo você? Não, estão vendo meu trabalho. MINHA maquiagem. MEU
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estilo de cabelo. Você é apenas uma tela onde eu pinto, desenho, faço minhas esculturas. Se estiver errado, o que os outros vão dizer?
Posso perder o emprego, sabia?
Gabriela sente-se ofendida, mas precisa acostumar-se com aquilo.
É assim o mundo do glamour e do brilho. Mais tarde, quando for realmente alguém, irá escolher pessoas bem-educadas e gentis para trabalhar com ela. No momento, volta a concentrar-se em sua maior virtude: paciência.
A conversa é interrompida pelo barulho do secador de cabelos, semelhante ao de um avião decolando. Por que reclama do ruído lá fora?
Enxuga os cabelos com alguma violência, e pede que caminhe rá-
pido para o estúdio de maquiagem portátil. Ali, o humor do homem muda por completo: fi ca em silêncio, contempla a fi gura no espelho, parece estar em outro mundo. Caminha de um lado para o outro usando o secador e a escova da mesma maneira que Michelangelo usava o martelo e o cinzel para trabalhar a escultura de David. E ela procura manter os olhos fi xos adiante, e lembra-se dos versos de um poeta português:
“O espelho refl ete certo; não erra porque não pensa. Pensar é es-sencialmente errar.”
O andrógino e a mulher voltam, faltam apenas vinte minutos para que a limusine chegue e a leve até o Martinez, onde deve encontrar-se com a Celebridade. Não existe local para estacionar ali, devem estar pontualmente na hora. O cabeleireiro murmura alguma coisa, como se fosse um artista incompreendido pelos seus senhores, mas sabe que tem que cumprir os horários. Começa a trabalhar em seu rosto como Michelangelo pintando os murais da Capela Sistina.
Limusine! Subir os degraus! Celebridade!
“O espelho refl ete certo; não erra porque não pensa.”
Não pense, ou irá deixar-se contagiar pelo estresse e pelo mau-humor reinante: as vibrações negativas podem voltar. Adoraria per-2 2 2
guntar o que é aquela suíte cheia de coisas tão diferentes, mas deve comportar-se como se estivesse acostumada a freqüentar lugares como aquele. Michelangelo dá os últimos retoques sob o ar severo da mulher e o olhar distante do andrógino. Levanta-se, é rapidamente vestida, calçada, tudo está em seu lugar, graças a Deus.
Pegam em algum lugar do salão uma pequena bolsa de couro Hamid Hussein. O andrógino abre, tira um pouco de papel que está ali dentro para fazer com que conserve sua forma, olha o resultado com o mesmo ar distante de sempre, mas parece aprovar o volume e entrega-lhe.
A mulher lhe dá quatro cópias de um gigantesco contrato, com pequenos marcadores vermelhos colados nas margens, onde está escrito: “Assine aqui.”
— Ou assina sem ler, ou leve para casa, ou telefone para o seu advogado, diga que precisa de mais tempo para tomar uma decisão.
Você irá subir os degraus de qualquer jeito, porque já não há nada que possamos fazer. Entretanto, se este contrato não estiver aqui amanhã de manhã, basta devolver o vestido.
Lembra-se da mensagem enviada pela agente: aceite qualquer coisa. Gabriela pega a caneta que lhe é estendida, vai até as páginas onde estão os marcadores, assina tudo rapidamente. Não tem nada, absolutamente nada a perder. Se as cláusulas não forem justas, com certeza poderá acioná-los na justiça, dizendo que foi pressionada a fazer aquilo: mas antes precisa fazer o que sempre sonhou.
A mulher recolhe as cópias e desaparece sem se despedir. O Michelangelo está de novo desmontando a mesa de maquiagem, imerso em seu mundo onde a injustiça é a única lei, seu trabalho nunca é reconhecido, não tem tempo para fazer aquilo que gostaria, e se alguma coisa der errado a culpa é exclusivamente dele. O andrógino pede que o siga até a porta da suíte, consulta o seu relógio — onde Gabriela pode ver o símbolo de uma caveira no mostrador — e fala pela primeira vez desde que se conheceram.
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— Faltam ainda três minutos. Não pode descer assim e fi car exposta ao olhar dos outros. E eu devo acompanhá-la até a limusine.
A tensão volta: já não está mais pensando em limusine, celebridade, subir os degraus — está com medo. Precisa conversar.
— O que é essa suíte? Por que tem tantos objetos diferentes?
— Inclusive um safári para o Quênia — diz o andrógino, apontando para um canto. Ela não havia notado uma faixa discreta de uma companhia de aviação, com alguns envelopes em cima de uma mesa. — Gratuito, como tudo o mais aqui, exceto as roupas e acessórios do Templo.
Máquinas de café, aparelhos eletrônicos, vestidos, bolsas, reló-
gios, bijuterias, safári para o Quênia.
Tudo absolutamente grátis?
— Sei o que está pensando — diz o andrógino com sua voz que não é nem de homem nem de mulher, mas de um ser interplanetá-
rio. — Sim, gratuito. Melhor dizendo, uma troca honesta, já que não existe nada grátis neste mundo. Este é um dos muitos “Quartos de Presentes” espalhados por Cannes durante a época do Festival.
Os eleitos entram aqui e escolhem o que desejam; são pessoas que vão circular por aí usando a blusa de A, os óculos de B, receberão outras pessoas importantes nas suas casas e, no fi nal da festa, irão até a cozinha preparar um café em um novo modelo de máquina.
Transportarão seus computadores em bolsas feitas por C, terminarão por recomendar os cremes de D, que estão sendo lançados agora no mercado, e se sentirão importantes fazendo isso — porque possuem algo exclusivo, que ainda não chegou às lojas especializadas. Irão para a piscina com a bijuteria de E, serão fotografados com o cinto de F — nenhum desses produtos está ainda no mercado. Quando chegarem ao mercado, a Superclasse já fez a propaganda necessária