— não exatamente porque gostam, mas pela simples razão que ninguém mais tem acesso àquilo. Neste momento, os pobres mortais gastarão todas as suas economias para comprar esses produtos. Nada 2 2 4
mais simples, minha querida. Os produtores investem em algumas amostras, e os eleitos se transformam em cartazes ambulantes.
“Mas não se anime; você ainda não chegou lá.”
— E o que o safári para o Quênia tem a ver com tudo isso?
— Você quer melhor propaganda que um casal de meia-idade chegando entusiasmado de sua “aventura na selva”, as câmeras cheias de fotos, recomendando a todos esse passeio exclusivo? Todos os seus amigos vão querer experimentar a mesma coisa. Repito: não existe absolutamente nada grátis neste mundo. Por sinal, os três minutos passaram, é hora de descer e preparar-se para subir os degraus.
Uma limusine branca os espera. O chofer, de luvas e quepe, abre a porta. O andrógino dá as últimas instruções:
— Esqueça o fi lme, não é por causa disso que você está subindo os degraus. Quando chegar lá em cima, cumprimente o diretor do Festival, o prefeito, e logo depois de entrar no Palácio do Congresso, caminhe em direção ao banheiro que fi ca no primeiro andar. Vá até o fi nal desse corredor, vire à esquerda e saia por uma porta lateral.
Alguém a estará esperando ali; sabem como está vestida, e a levarão para uma nova sessão de maquiagem, penteado, um momento de repouso no terraço. Eu a encontro ali, e a acompanharei até o jantar de gala.
— Mas os diretor e os produtores não vão fi car aborrecidos?
O andrógino fez um sinal com os ombros e voltou para o hotel com seus passos cadenciados e estranhos. O fi lme? O fi lme não tinha a menor importância. O importante mesmo era:
SUBIR OS DEGRAUS!
Ou seja, a expressão local para designar o tapete vermelho, o supremo corredor da fama, o lugar onde todas as celebridades do mundo do cinema, das artes, do grande luxo eram fotografadas, e o material distribuído por agências para os quatro cantos do mundo, publicado em revistas que iam da América ao Oriente, do Norte ao Sul do planeta.
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— O ar-condicionado está bom, madame?
Ela faz um sinal positivo com a cabeça para o chofer.
— Se desejar algo, há uma garrafa de champagne gelada no console à sua esquerda.
Gabriela abre o console, pega uma taça de cristal, estende os braços para bem distante do seu vestido, escuta o barulho da rolha desprendendo-se da garrafa, serve uma taça que bebe imediatamente, torna a enchê-la e bebe outra vez. Do lado de fora, cabeças curiosas tentavam ver quem estava dentro do imenso carro com vidros fumê, andando pela pista especial. Em breve, ela e a Celebridade estariam ali, juntos, o início não apenas de uma nova carreira, mas de uma incrível, bela, intensa história de amor.
É uma mulher romântica e se orgulha disso.
Lembra-se de que deixara a roupa e a bolsa no “Quarto dos Presentes”. Não tinha a chave do apartamento em que estava hospedada.
Não tinha para onde ir quando a noite acabasse. Aliás, se algum dia escrevesse um livro sobre sua vida, seria incapaz de contar a história daquele dia: acordando de ressaca em um apartamento com roupas e colchonetes espalhados pelo chão, desempregada, de mau humor
— e seis horas depois em uma limusine, pronta para caminhar pelo tapete vermelho diante de uma multidão de jornalistas, ao lado de um dos homens mais desejados do mundo.
Suas mãos tremem. Pensa em beber mais uma taça de champagne, mas resolve não correr o risco de aparecer embriagada nos degraus da fama.
“Relaxe, Gabriela. Não esqueça quem você é. Não se deixe levar por tudo que está acontecendo agora — seja realista.”
Repete sem cessar estas frases à medida que se aproximam do Martinez. Mas, querendo ou não, jamais poderia voltar a ser quem era antes. Não havia uma porta de saída — exceto aquela que o an-drógino indicou, e que leva para uma montanha mais alta ainda.
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4:52 PM
Até mesmo o Rei dos Reis, Jesus Cristo, precisou passar pela prova diante da qual Igor agora se encontra: a sedução do demônio. E
ele precisa agarrar-se com unhas e dentes à sua fé para que consiga não fraquejar na missão que lhe foi concedida.
O demônio está pedindo que pare, que perdoe, que deixe tudo aquilo de lado. O demônio é um profi ssional de primeiríssima qualidade, e assusta os fracos com sentimentos de medo, preocupações, impotência, desespero.
No caso dos fortes, as tentações são muito mais sofi sticadas: boas intenções. Foi isso que ele fez com Jesus quando o encontrou no deserto: sugerir que transformasse as pedras em alimento. Assim, não apenas poderia saciar sua fome, mas também a de todos aqueles que imploravam algo para comer. Jesus, entretanto, agiu com a sabedoria que era de se esperar do Filho de Deus. Respondeu que nem só de pão vive o homem, mas também de tudo aquilo que vem do Espírito.
Boas intenções, virtude, integridade, o que é exatamente isso?
Pessoas que se diziam íntegras porque obedeciam seu governo terminaram construindo os campos de concentração na Alemanha. Mé-
dicos que estavam convencidos de que o comunismo era um sistema justo deram atestado de insanidade e exilaram na Sibéria todos os intelectuais que eram contra o regime. Soldados vão para a guerra matar em nome de um ideal que não conhecem direito, cheios de boas intenções, virtude, integridade.
Não é nada disso. O pecado para o bem é uma virtude, a virtude para o mal é um pecado.
Em seu caso, o perdão é a maneira que o Maligno encontrou para deixar sua alma em confl ito. Diz: “Você não é o único que passa por isso. Muita gente já foi abandonada pela pessoa que mais amou, e 2 2 7
mesmo assim conseguiu transformar amargura em felicidade. Imagine as famílias das pessoas que, por sua causa, acabam de deixar este mundo: serão tomadas de ódio, sede de vingança, amargura. É assim que você pretende melhorar o mundo? É isso que você gostaria de oferecer à mulher que ama?”
Mas Igor é mais sábio que as tentações que agora parecem possuir sua alma: se resistir mais um pouco, aquela voz acabará por cansar-se e desaparecer. Principalmente porque uma das pessoas que enviou ao Paraíso está a cada minuto mais presente em sua vida; a menina de sobrancelhas grossas diz que tudo está bem, que existe uma grande diferença entre perdoar e esquecer. Não existe o menor ódio em seu coração, e não está fazendo aquilo para vingar-se do mundo.
O demônio insiste, mas ele precisa mostrar-se fi rme, relembrar a razão por que está ali.
Entra na primeira pizzaria que vê. Pede uma marguerita e uma Coca-Cola normal. Melhor alimentar-se agora, não conseguirá —
como nunca conseguiu — comer direito em jantares com outras pessoas na mesa. Todas se sentem na obrigação de manter uma conversa animada, relaxada, e adoram interrompê-lo justamente quando está pronto para saborear mais um pouco do delicioso prato à sua frente.
Em ocasiões normais, tem sempre um plano para evitar isso: bom-bardear os outros com perguntas, de modo que todos possam dizer coisas inteligentes enquanto ele janta tranqüilo. Mas nesta noite não está disposto a ser conveniente e social. Será antipático e distante.
Em último caso, pode alegar que não fala a língua.
Sabe que nas próximas horas a Tentação está mais forte que nunca, pedindo que pare, que desista de tudo. Mas ele não pretende parar; seu objetivo é terminar a missão planejada, mesmo que a razão pela qual se dispôs a cumpri-la esteja mudando.
Não tem a menor idéia se três mortes violentas fazem parte da estatística normal de um dia em Cannes; se for assim, a polícia não 2 2 8