— E por que destruir o mundo?
— Para reconstruir o meu.
Olivia pode tentar consolar a pessoa ao seu lado. Mas tem medo de escutar a famosa frase “Gostaria que você desse um sentido à minha vida”, e a conversa iria acabar logo, porque ela tinha outros planos para o seu futuro. Além do mais, seria completamente idiota de sua parte tentar ensinar a um homem mais velho e mais bem-sucedido como ultrapassar suas difi culdades.
A saída era procurar saber mais de sua vida. Afi nal de contas, ele havia pagado — e bem — por seu tempo.
— Como pretende fazer isso?
— Você conhece alguma coisa sobre sapos?
— Sapos?
Ele continua:
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— Vários estudos biológicos demonstram que um sapo colocado num recipiente com a mesma água de sua lagoa fi ca estático durante todo o tempo em que aquecemos o líquido. O sapo não reage ao gradual aumento de temperatura, às mudanças de ambiente, e morre quando a água ferve, inchado e feliz.
“Por outro lado, outro sapo que seja jogado nesse recipiente com a água já fervendo, salta imediatamente para fora. Meio chamuscado, porém vivo.”
Olivia não entende direito o que isso tem a ver com a destruição do mundo. Igor continua:
— Já me comportei como um sapo fervido. Não percebi as mudanças. Achava que tudo estava bem, que o mal ia passar, era só uma questão de tempo. Estive prestes a morrer porque perdi a coisa mais importante na vida e, em vez de reagir, fi quei boiando, apático, na água que se aquecia a cada minuto.
Olivia toma coragem e faz a pergunta:
— O que você perdeu?
— Na verdade eu não perdi; existem momentos em que a vida separa determinadas pessoas apenas para que ambas entendam quanto uma é importante para a outra. Digamos que ontem à noite vi minha mulher com outro homem. Sei que ela deseja voltar, que ainda me ama, mas não tem coragem de dar este passo. Há sapos fervidos que ainda acreditam que o fundamental é a obediência, e não a competência: manda quem pode, e obedece quem tem juízo. E nisso tudo, onde está a verdade? É melhor sair meio chamuscado de uma situa-
ção, mas vivo e pronto para agir.
“E tenho certeza de que você pode me ajudar nesta tarefa.”
Olivia imagina um pouco o que passa pela cabeça do homem ao seu lado. Como é que alguém podia abandonar uma pessoa que parecia tão interessante, capaz de conversar sobre coisas que jamais escutara? Enfi m, o amor não tem lógica mesmo — apesar de sua pouca idade, sabe disso. Seu namorado, por exemplo, pode fazer coisas 3 0
brutais, de vez em quando a espanca sem razão, e mesmo assim ela não consegue passar um dia longe dele.
De que estavam falando mesmo? De sapos. E de que ela podia ajudá-lo. Claro que não pode, portanto é melhor mudar de assunto.
— E como pretende destruir o mundo?
Igor aponta a única pista de trânsito livre na Croisette.
— Digamos que eu não deseje que você vá a uma festa, mas não posso falar isso abertamente. Se eu esperar a hora do congestiona-mento, e parar um carro no meio desta rua, em dez minutos toda a avenida em frente à praia estará congestionada. Os motoristas vão pensar: “Deve ter sido um acidente”, e terão um pouco de paciência.
Em quinze minutos, a polícia chega com um caminhão para rebocar o carro.
— Isso já aconteceu centenas de vezes.
— Mas eu teria saído do carro e espalhado pregos e objetos cor-tantes diante dele. Com todo cuidado, sem que ninguém se dê conta.
Eu teria a paciência de pintar todos estes objetos de preto, de modo que se confundissem com o asfalto. No momento em que o caminhão se aproximasse, seus pneus seriam destruídos. Agora temos dois problemas, e o engarrafamento já está chegando nos subúrbios desta pequena cidade, onde você possivelmente mora.
— Muito criativo como idéia. Mas o máximo que conseguiria era que eu me atrasasse por uma hora.
Foi a vez de Igor sorrir.
— Bem, eu podia discorrer algumas horas sobre como aumentar este problema — quando as pessoas se juntassem para ajudar, por exemplo, eu jogaria algo como uma pequena bomba de fumaça debaixo do caminhão. Todos se assustariam. Eu entraria no meu carro, fi ngindo desespero, e daria a partida no motor, só que ao mesmo tempo espalharia um pouco de fl uido de isqueiro no tapete do carro, e atearia fogo. Daria tempo para saltar e assistir à cena: o carro incen-3 1
diando aos poucos, o tanque de gasolina sendo atingido, a explosão, o carro de trás também sendo atingido — e a reação em cadeia. Tudo isso usando um carro, alguns pregos, uma bomba de fumaça que pode ser comprada em qualquer loja, e uma pequena lata de fl uido de isqueiro...
Igor tira um tubo de ensaio do bolso, com um pouco de líquido dentro.
— ...do tamanho disso aqui. Isso eu devia ter feito quando vi que Ewa iria partir. Atrasar sua decisão, fazer com que pensasse mais um pouco, que medisse as conseqüências. Quando as pessoas começam a refl etir sobre as decisões que precisam tomar, geralmente terminam desistindo — é preciso muita coragem para dar determinados passos.
“Mas fui orgulhoso, achei que era provisório, que iria se dar conta. Tenho certeza de que agora está arrependida, e deseja voltar — eu repito. Mas para isso, será preciso que eu destrua alguns mundos.”
A expressão dele havia mudado, e Olivia já não estava achando graça nenhuma na história. Levanta-se.
— Bem, eu preciso trabalhar.
— Mas eu lhe paguei para que me escutasse. Paguei o sufi ciente por todo o seu dia de trabalho.
Ela coloca a mão no bolso para retirar o dinheiro que lhe havia sido entregue, e neste momento vê a pistola apontada para o seu rosto.
— Sente-se.
Seu primeiro impulso foi correr. O casal de velhos aproximava-se lentamente.
— Não corra — diz ele, como se pudesse ler seus pensamentos.
— Não tenho a menor intenção de atirar, se você sentar-se e ouvir até o fi nal. Se você não fi zer nada, apenas me obedecer, eu juro que não atiro.
Na cabeça de Olivia uma série de opções desfi la rapidamente: correr em ziguezague era a primeira delas, mas percebe que suas pernas estão frouxas.
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— Sente-se — repetiu o homem. — Não vou atirar em você se fi zer o que estou mandando. Eu prometo.
Sim. Seria uma loucura disparar aquela arma em uma manhã de sol, com carros passando na rua, pessoas indo para a praia, o trânsito fi cando cada vez mais denso, outras pessoas começando a caminhar pela calçada. Melhor fazer o que o homem diz — simplesmente porque não tem condições de agir de outra forma; está quase desmaiando.
Obedece. Agora precisa convencê-lo de que não é uma ameaça, escutar suas lamentações de marido abandonado, prometer que não tinha visto nada, e assim que um policial aparecer fazendo a ronda habitual, atirar-se no chão e gritar por socorro.
— Sei exatamente o que está sentindo — a voz do homem procura acalmá-la. — Os sintomas do medo são os mesmos desde a noite dos tempos. Era assim quando os seres humanos enfrentavam as bes-tas selvagens, e continua sendo da mesma maneira até hoje: o sangue desaparece da face e da epiderme, protegendo o corpo e evitando o sangramento — daí a sensação de palidez. Os intestinos se afrouxam e soltam tudo, para evitar que matérias tóxicas contaminem o organismo. O corpo recusa a mover-se em um primeiro momento, para não provocar a fera, e evitar que ela ataque a qualquer gesto suspeito.
“Tudo isso é um sonho”, pensa Olivia. Lembra-se dos pais, que na verdade deviam estar ali naquela manhã, mas que haviam passado a noite trabalhando nas bijuterias porque o dia devia ser movimenta-do. Há algumas horas, fazia amor com seu namorado, que julgava ser o homem de sua vida, embora abusasse dela de vez em quando; os dois tiveram um orgasmo simultâneo, o que não acontecia há muito tempo. Depois do café daquela manhã, decidiu não tomar a ducha de sempre, porque se sentia livre, cheia de energia, contente com a vida.