irá suspeitar que algo diferente está acontecendo. Continuarão com seus procedimentos burocráticos e poderá embarcar como previsto durante a madrugada. Tampouco sabe se já o identifi caram; há o casal que passava de manhã e cumprimentou a vendedora, um dos guarda-costas do homem havia prestado atenção, e alguém presen-ciara o assassinato da mulher.
A Tentação agora está mudando de estratégia: quer deixá-lo assustado, como faz com as pessoas fracas. Pelo visto, o demônio não tem a menor idéia de tudo que passou, e como saiu fortalecido da prova que o destino lhe impusera.
Pega seu celular e digita uma nova mensagem.
Imagina qual a reação de Ewa quando recebê-la. Algo em seu interior diz que ela fi cará assustada e contente ao mesmo tempo. Está profundamente arrependida do passo que deu há dois anos — deixando tudo para trás, inclusive suas roupas e jóias, e pedindo que seu advogado entrasse em contato com ele para os procedimentos ofi ciais de divórcio.
Motivo: incompatibilidade de gênios. Como se todas as pessoas interessantes do mundo pensassem rigorosamente igual, e tivessem muitas coisas em comum. Claro que era uma mentira: tinha se apaixonado por outro.
Paixão. Quem no mundo pode dizer que, depois de mais de cinco anos de casado, não olhou para o lado e desejou estar em outra companhia? Quem pode dizer que não traiu pelo menos uma vez na vida, mesmo que esta traição tenha se passado apenas no imaginário da pessoa? E quantas mulheres e homens saíram de casa por causa disso, descobriram que a paixão não dura, e terminaram voltando para seus verdadeiros parceiros? Um pouco de maturidade, e tudo seria esquecido. Isso é absolutamente normal, aceitável, parte da bio-logia humana.
Claro, teve que aprender isso aos poucos. No início, instruiu seus advogados para serem de uma rigidez nunca vista — se ela quisesse 2 2 9
largá-lo teria que também abrir mão da fortuna que acumularam juntos, centavo por centavo, durante quase vinte anos. Embriagou-se durante uma semana, enquanto aguardava a resposta; pouco se importava com o dinheiro, estava fazendo aquilo porque a queria de volta de qualquer maneira, e essa era a única pressão que conhecia.
Ewa era uma pessoa íntegra. Os advogados dela aceitaram as condições.
A imprensa tomou conhecimento do caso — e foi pelos jornais que soube da nova relação de sua ex-esposa. Um dos mais bem-sucedidos costureiros do planeta, alguém que viera do nada, como ele. Que tinha em torno de 40 anos, como ele. Que era conhecido por não ser arrogante, e trabalhava dia e noite.
Como ele.
Não podia entender o que havia acontecido. Pouco antes de embarcar para uma feira de moda em Londres, tinham passado um dos raros momentos de solidão e romance em Madri. Embora tivessem viajado no jato da companhia, se hospedado num hotel com todos os confortos possíveis e imagináveis, haviam resolvido redescobrir o mundo juntos. Não reservavam restaurantes, entravam em enormes fi las de museus, usavam táxis em vez das limusines com chofer sempre esperando do lado de fora, andavam e se perdiam pela cidade.
Comiam muito, bebiam mais ainda, chegavam exaustos e contentes, voltaram a fazer amor todas as noites.
Ambos precisavam se controlar para não se conectarem aos seus computadores portáteis, ou para deixar os telefones celulares desligados. Mas conseguiram. E voltaram para Moscou com o coração cheio de lembranças, e um sorriso no rosto.
Ele mergulhou de novo em seu trabalho, surpreso ao ver que as coisas haviam continuado a funcionar bem apesar de sua ausência.
Ela partiu para Londres na semana seguinte, e nunca mais voltou.
Igor contratou um dos melhores escritórios de vigilância privada
— normalmente usado para espionagem industrial ou política — e 2 3 0
foi obrigado a ver centenas de fotos em que sua mulher aparecia de mãos dadas com o novo companheiro. Os detetives conseguem arranjar-lhe uma “amiga” desenhada sob medida, através de informações fornecidas por seu ex-marido. Ewa a encontra por acaso em uma loja de departamentos; viera da Rússia, foi “abandonada pelo marido”, não arranja emprego por causa das leis britânicas, e agora está a ponto de passar fome. Ewa desconfi a a princípio, depois resolve ajudá-la. Fala com seu namorado, que resolve correr os riscos e termina arranjando um emprego em um dos seus escritórios, embora não tenha papéis legais.
É sua única “amiga” que fala a língua materna. Está só. Teve problemas matrimoniais. Segundo os psicólogos da empresa de vigilância, o modelo ideal para obter as informações desejadas: sabe que Ewa ainda não conseguiu se adaptar ao novo meio, e faz parte do instinto normal de todo ser humano dividir coisas íntimas com um desconhecido em circunstâncias semelhantes. Não para encontrar uma resposta; simplesmente para desafogar a alma.
A “amiga” grava todas as conversas, que acabam na mesa de Igor, e são mais importantes que os papéis a assinar, os convites a aceitar, os presentes que precisam ser enviados aos principais clientes, fornecedores, políticos, empresários.
As fi tas são muito mais úteis — e muito mais dolorosas que as fotos. Descobre que a relação com o famoso costureiro começou dois anos antes, na Semana de Moda de Milão, onde os dois se encontravam por motivos profi ssionais. Ewa resistiu no início — o homem vivia cercado das mais belas mulheres do mundo, e àquela altura ela já estava com 38 anos. Mesmo assim, terminaram indo para a cama em Paris, na semana seguinte.
Quando escutou isso, notou que fi cara excitado, e não entendeu direito a resposta do seu corpo. Por que o simples fato de imaginar sua mulher de pernas abertas, sendo penetrada por outro homem, lhe provocava uma ereção em vez de repulsa?
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Foi o único momento em que julgou haver perdido a sanidade.
E resolveu fazer uma espécie de confi ssão pública, para diminuir o sentimento de culpa. Conversando com seus companheiros, contava que “um amigo seu” sentia imenso prazer ao saber que sua mulher estava tendo relações extraconjugais. Foi aí que veio a surpresa.
Os companheiros, geralmente grandes executivos e políticos de diversas classes sociais e nacionalidades, fi cavam horrorizados no início. Mas após o décimo copo de vodka confessavam que isso era uma das coisas mais excitantes que pode acontecer em um casamento. Um deles sempre pedia que a mulher lhe contasse os detalhes mais sórdidos, as palavras que tinham sido ditas. Outro confessou que os clubes de swing — locais freqüentados por casais que desejam ter experiências sexuais coletivas — eram a terapia ideal para salvar um casamento.
Um exagero. Mas fi cou feliz em saber que não era o único homem que se excitava ao saber que sua mulher tivera relações com outros.
E fi cou infeliz por conhecer tão pouco o gênero humano, principalmente o masculino — suas conversas giravam apenas em torno de negócios, raramente entrando no terreno pessoal.
Volta a pensar nas fi tas. Em Londres (as semanas de moda, para facilitar a vida dos profi ssionais, aconteciam de maneira sucessiva) o tal costureiro já estava apaixonado; o que não era difícil acreditar, já que tinha encontrado uma das mulheres mais especiais do mundo.
Ewa, por sua vez, continuava cheia de dúvidas: Hussein era o segundo homem com quem fazia amor em sua vida, trabalhavam no mesmo ramo, ela sentia-se imensamente inferior. Teria que renunciar ao sonho de trabalhar com moda, porque era impossível concorrer com seu futuro marido — e voltaria a ser uma simples dona de casa.
Pior do que isso: não conseguia explicar por que alguém tão poderoso podia interessar-se por uma russa de meia-idade.
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Igor poderia explicar, se ela lhe desse pelo menos uma oportunidade de conversarem: sua simples presença era capaz de despertar a luz de todos que a cercavam, fazer com que todos dessem o melhor de si mesmos, que surgissem das cinzas do passado cheios de luz e de esperança. Porque isso havia acontecido com o jovem que voltara de uma guerra sangrenta e inútil.