Выбрать главу

A Tentação volta. O demônio diz que não é exatamente assim, ele mesmo havia superado seus traumas através do trabalho compulsivo. Embora isso pudesse ser considerado uma desordem psicológica pelos psiquiatras, na verdade era uma maneira de superar as próprias feridas através do perdão e do esquecimento. Ewa não era exatamente tão importante assim: Igor precisava deixar de identifi car todas as suas emoções com uma relação que já não existia.

“Você não é o primeiro”, repetia o demônio. “Você está sendo levado a fazer o mal pensando que desta maneira desperta o bem.”

Igor começa a fi car nervoso. Era um homem bom, e sempre que precisara agir de maneira dura, tinha sido em nome de uma causa maior: servir seu país, evitar que os excluídos não sofressem desnecessariamente, usar ao mesmo tempo a outra face e o chicote, como fi zera Jesus Cristo, seu único modelo de vida.

Faz um sinal-da-cruz, na esperança de que a Tentação se afaste.

Força-se a lembrar das fi tas, do que Ewa dizia, de sua infelicidade com o novo companheiro. Mas que jamais pretende voltar ao passado, porque fora casada com um “desequilibrado”.

Que absurdo. Pelo visto, estava passando por um processo de lavagem cerebral em seu novo ambiente. Devia andar em péssimas companhias. Tem certeza de que está mentindo quando comenta com sua amiga russa que havia decidido se casar por uma única ra-zão: medo de fi car sozinha.

2 3 3

Em sua juventude sentia-se sempre rejeitada pelos outros, não conseguia jamais ser ela mesma — era obrigada a fi ngir constantemente que se interessava pelas mesmas coisas que suas amigas, que participava dos mesmos jogos, que se divertia nas festas, que buscava um homem bonito, que lhe desse segurança no lar, fi lhos, e fi delida-de conjugal. “Tudo mentira”, confessa.

Na verdade, sempre sonhou com a aventura e o desconhecido. Se pudesse ter escolhido uma profi ssão quando ainda era adolescente, seria trabalhar com arte. Desde criança adorava recortar e fazer colagens com fotos das revistas do Partido Comunista; embora detestas-se o que visse ali, conseguia colorir os vestidos sombrios e alegrar-se com os resultados. Por causa das difi culdades em encontrar roupas de boneca, vestia seus brinquedos com fi gurinos feitos pela sua mãe.

Ewa não apenas admirava as roupinhas, mas dizia a si mesma que um dia seria capaz de fazer a mesma coisa.

Não existia moda na antiga União Soviética. Só passaram a saber o que acontecia no resto do planeta quando o Muro de Berlim foi abaixo e as revistas estrangeiras começaram a entrar no país. Ela já era uma adolescente, e agora fazia colagens mais vivas e mais interessantes, até que um dia resolveu comentar com a família que seu sonho era exatamente isso: desenhar roupas.

Assim que terminou a escola, seus pais a enviaram para uma faculdade de Direito. Por mais que estivessem contentes com a liberdade recém-conquistada, havia certas idéias capitalistas que estavam ali para destruir o país, afastar o povo da verdadeira arte, trocar Tolstói e Pushkin por livros de espionagem, corromper o balé clássico com aberrações modernas. Sua fi lha única precisava ser afastada rapidamente da degradação moral que tinha vindo junto com a Coca-Cola e os carros de luxo.

Na universidade encontrou um rapaz bonito, ambicioso, que pensava exatamente como ela: não podemos continuar achando que o 2 3 4

regime em que nossos pais viveram vá retornar. Ele se foi e para sempre. É hora de começar uma nova vida.

Adorou o rapaz. Começaram a sair juntos. Viu que era inteligente e iria conseguir muitas coisas na vida. Era capaz de entendê-la. Claro, havia lutado na guerra do Afeganistão, havia sido atingido durante um combate, mas nada sério; nunca reclamou do passado, e nos muitos anos em que estiveram juntos, jamais demonstrou qualquer sintoma de desequilíbrio ou trauma.

Certa manhã trouxe-lhe um buquê de rosas. Disse que estava abandonando a universidade para começar um negócio por conta própria. Em seguida, propôs casamento. Ela aceitou; embora não tivesse por ele nada além de admiração e companheirismo, achava que o amor viria com o tempo e a convivência. Além do mais, o rapaz era o único que realmente a entendia e a estimulava; se deixasse escapar aquela oportunidade, talvez nunca mais encontrasse alguém que a aceitava como era.

Casaram-se sem grandes formalidades e sem o apoio da família. O

rapaz conseguiu dinheiro junto a pessoas que ela considerava perigosas, mas não podia fazer nada. Pouco a pouco, a companhia que havia aberto começou a crescer. Depois de quase quatro anos juntos, ela fez

— morrendo de medo — sua primeira exigência: que pagasse logo as pessoas que haviam lhe emprestado dinheiro no passado, e que não pareciam muito interessadas em recebê-lo de volta. Ele seguiu seu conselho, e mais tarde viria a agradecer muitas vezes por isso.

Os anos se passaram, as necessárias derrotas aconteceram, as noites em claro se sucediam, até que as coisas começaram a melhorar, e a partir daí o patinho feio da história começou a seguir exatamente o roteiro das histórias infantis: transformou-se em um belo cisne, cobiçado por todos.

Ewa reclamou de sua vida como dona de casa. Em vez de reagir como os maridos de suas amigas, para os quais o trabalho era sinôni-mo de falta de feminilidade, ele comprou uma loja em um dos pontos 2 3 5

mais cobiçados de Moscou. Passou a vender modelos dos grandes costureiros mundiais, embora jamais arriscasse a fazer seus próprios desenhos. Mas seu trabalho tinha outras compensações: viajava para os grandes salões de moda, convivia com pessoas interessantes, e foi então que conheceu Hamid. Até hoje não sabia se o amava — possivelmente a resposta seria “não”. Mas sentia-se confortável ao seu lado. Não tinha nada a perder quando ele confessou que jamais encontrara alguém como ela, e lhe propôs que vivessem juntos. Não tinha fi lhos. Seu marido era casado com o próprio trabalho, e eventualmente sequer notaria sua falta.

“Deixei tudo para trás”, dizia Ewa em uma das fi tas. “E não me arrependo de minha decisão. Teria feito a mesma coisa mesmo que Hamid — contra a minha vontade — não tivesse comprado a linda fazenda na Espanha e a colocado em meu nome. Tomaria a mesma decisão se Igor, meu ex-marido, tivesse me oferecido metade de sua fortuna. Tomaria a mesma decisão porque sei que não preciso mais ter medo. Se um dos homens mais desejados do mundo quer estar ao meu lado, sou melhor do que eu mesma penso.”

Em outra fi ta, ele nota que sua amada devia estar passando por problemas psicológicos muito sérios.

“Meu marido perdeu a razão. Não sei se é a guerra, ou a tensão causada por excesso de trabalho, mas ele pensa que pode entender os desígnios de Deus. Antes de decidir ir embora, fui procurar um psiquiatra para que pudesse entendê-lo melhor, ver se era possível salvar nossa relação. Não entrei em detalhes para não o comprometer, e não vou entrar em detalhes agora com você. Mas acho que ele seria capaz de coisas terríveis se julgasse que estava fazendo o bem.

“O psiquiatra me explicou que muita gente generosa, e com compaixão pelo seu semelhante, de uma hora para outra é capaz de mudar por completo de atitude. Alguns estudos foram feitos a respeito, e chamam esta mudança de ‘O Efeito de Lúcifer’, o anjo mais amado por Deus, que terminou querendo exercer o mesmo poder que Ele.”

2 3 6

“E por que isso acontece?”, pergunta uma outra voz feminina.

Mas, pelo visto, não planejaram bem o tempo de gravação. A fi ta termina ali.

Ele gostaria muito de saber a resposta. Porque sabe que não está se igualando a Deus. Porque tem certeza de que a sua amada está inven-tando tudo aquilo para si mesma, com medo de voltar e de não ser aceita. Claro, já teve que matar por necessidade, mas o que isso tem a ver com o casamento? Matou na guerra, sob a permissão ofi cial que os soldados têm. Matou duas ou três pessoas, sempre procurando o melhor para elas — que não tinham mais condição de viver com dignidade. Em Cannes, estava apenas cumprindo uma missão.