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E só mataria alguém que ama se entendesse que estava louca, que havia perdido o seu caminho, e começara a destruir sua própria vida.

Não permitiria nunca que a decadência da mente comprometesse um passado de brilho e generosidade.

Só mataria alguém que ama para salvá-la de uma longa e dolorosa autodestruição.

Igor olha a Maserati que acabara de parar diante dele, em local proibido; um carro absurdo e desconfortável, obrigado a andar à mesma velocidade que os outros apesar da potência do seu motor, baixo demais para estradas secundárias, perigoso demais para as rodovias.

Um homem em torno dos 50 anos — mas querendo parecer 30

— abre a porta e sai, fazendo um imenso esforço, já que a porta se encontra muito próxima do chão. Entra na pizzaria, pede uma

“quattro formaggi” para levar.

Maserati e pizzaria. Estas coisas não combinam. Mas acontecem.

A Tentação volta. A esta altura já não está mais lhe falando de perdão, de generosidade, de esquecer o passado e seguir adiante — é algo diferente, que começa a colocar dúvidas de verdade em sua mente. E se Ewa fosse, como dizia, completamente infeliz? Se, ape-2 3 7

sar do seu profundo amor por ele, estivesse já mergulhada no abismo sem volta de uma decisão mal tomada, como aconteceu com Adão no momento em que aceitou a maçã que lhe era oferecida, e terminou por condenar todo o gênero humano?

Planejou tudo, repete para si mesmo pela milésima vez. Sua idéia era voltarem juntos, não deixar que uma palavra tão pequena como

“adeus” pudesse arrasar por completo a vida de ambos. Entende que um casamento sempre passa por suas crises, principalmente depois de 18 anos.

Mas sabe que um bom estrategista precisa estar constantemente mudando de planos. Envia de novo a mensagem pelo celular, só para certifi car-se de que terminará recebendo. Levanta-se, faz uma ora-

ção, e pede que não precise beber do cálice da renúncia.

A alma da pequena vendedora de artesanato está ao seu lado.

Entende agora que cometera uma injustiça; não custava nada esperar mais um pouco até encontrar um adversário à sua altura, como o pseudo-atlético de cabelos acaju naquele almoço. Ou agir pela absoluta necessidade de salvar uma pessoa de novos sofrimentos, como fi zera com a mulher na praia.

A menina de sobrancelhas grossas, porém, parece fl utuar como uma santa à sua volta, e pede para que não se arrependa; ele agiu corretamente, salvando-a de um futuro de sofrimentos e dor. Sua alma pura vai afastando pouco a pouco a Tentação, fazendo compreender que a razão pela qual está em Cannes não é forçar a volta de um amor perdido — isso é impossível.

Está ali para salvar Ewa da decadência e da amargura. Embora ela tenha sido injusta com ele, o que fez para ajudá-lo merece recompensa.

“Sou um homem bom.”

Vai até o caixa, paga a conta, pede uma pequena garrafa de água mineral. Quando sai, derrama todo o seu conteúdo na cabeça.

Precisa pensar com lucidez. Sonhou tanto para que este dia chegasse, e agora está confuso.

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5:00 PM

Apesar de a moda renovar-se a cada seis meses, uma coisa continua exatamente iguaclass="underline" os seguranças na porta estão sempre com ternos negros.

Hamid estudara alternativas para seus desfi les — seguranças com roupas coloridas, por exemplo. Ou todos vestidos de branco. Mas caso saísse da regra geral, os críticos iriam comentar mais sobre as

“inovações inúteis” do que escrever sobre aquilo que realmente interessava: a coleção na passarela. Além do mais, preto é uma cor perfeita: conservadora, misteriosa, gravada no inconsciente coletivo através dos antigos fi lmes de Hollywood. Os bons sempre se vestiam de branco, e os maus de negro.

“Imagine se a Casa Branca se chamasse Casa Negra. Todos iriam pensar que ali habitava o gênio das trevas.”

Toda cor tem seu propósito, embora pensem que são escolhidas por acaso. Branco signifi ca pureza e integridade. Negro intimida.

Vermelho choca e paralisa. Amarelo chama a atenção. Verde faz com que tudo pareça tranqüilo, é possível seguir adiante. Azul acalma.

Laranja confunde.

Guarda-costas precisavam estar vestidos de negro. Era assim desde o início, e assim deveria continuar.

Como sempre, três entradas diferentes. A primeira para a imprensa em geral, poucos jornalistas e muitos fotógrafos carregando seus pesados equipamentos, que parecem gentis uns com os outros mas estão sempre dispostos a dar cotoveladas nos companheiros quando chega o momento de conseguir o melhor ângulo, a foto única, o momento perfeito, a falha gritante. A segunda para os convidados, e a Semana de Moda de Paris não era em nada diferente daquele balneário do sul da França; as pessoas sempre mal vestidas, com quase toda certeza sem dinheiro para comprar o que seria mostrado 2 3 9

ali. Mas precisam estar presentes com suas pobres calças jeans, suas camisetas de mau gosto, seus tênis de marca sobressaindo a todo o resto, convencidas de que isso signifi ca descontração e familiaridade com o ambiente, o que era uma completa mentira. Algumas usavam bolsas e cintos que podiam ter custado caro, e isso era ainda mais patético: como se colocassem um quadro de Velásquez em uma moldura de plástico.

Finalmente, a entrada para os VIPs. Os seguranças nunca sabem de nada, limitam-se a manter os braços cruzados na frente, e a mostrar um olhar ameaçador — como se fossem os verdadeiros donos do local. A moça gentil aproxima-se, educada para decorar o rosto das pessoas famosas. Tem uma lista na mão e se dirige até o casal.

— Sejam bem-vindos, Sr. e Sra. Hussein. Obrigado por terem confi rmado a presença.

Passam na frente de todo mundo; embora o corredor seja o mesmo, uma separação de pilares de metal com fi tas de veludo vermelho mostra na verdade quem é quem, e quais são as pessoas mais importantes. Este é o momento da Pequena Glória, ser tratado de maneira especial, e mesmo que aquele desfi le não faça parte do calendário ofi cial — afi nal de contas era preciso não esquecer que Cannes é um Festival de Cinema —, o protocolo deve ser rigorosamente res-peitado. Por causa da Pequena Glória em todos os eventos paralelos (como jantares, almoços, coquetéis), homens e mulheres passam horas diante do espelho, convencidos de que a luz artifi cial não faz tão mal à pele como o sol lá fora, onde precisam usar toneladas de cremes protetores. Estão a dois passos da praia, mas preferem as sofi sticadas máquinas de bronzear nos institutos de beleza sempre a uma quadra do local onde estão hospedados. Desfrutariam de uma linda vista se resolvessem passear pela Croisette, mas quantas calorias iriam perder nessa caminhada? Melhor usar as esteiras rolantes também instaladas em miniacademias nos hotéis.

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Assim estarão em plena forma, vestindo-se de maneira estudada-mente casual para os almoços em que comem de graça e sentem-se importantes porque foram convidadas, os jantares de gala em que é preciso pagar muito dinheiro ou ter contatos em posição de destaque, as festas que acontecem depois dos jantares e se estendem até de madrugada, o último café ou uísque no bar do hotel. Isso tudo com muitas visitas ao banheiro para retocar a maquiagem, ajeitar a gravata, retirar as partículas de pele ou de poeira dos ombros do paletó, verifi car se o batom continua com o mesmo contorno.

Finalmente, a volta para os seus quartos de hotel de luxo, onde encontrarão o leito preparado, o menu do café-da-manhã, a previsão do tempo, um bombom de chocolate (retirado imediatamente do local porque signifi ca calorias em dobro), um envelope com seus nomes escritos em bela caligrafi a (jamais aberto, porque ali dentro está a carta padronizada do gerente do hotel lhes dando as boas-vindas) ao lado de uma cesta de frutas (avidamente devoradas porque contêm uma dose razoável de fi bras, bom para o funcionamento do organismo e ótimo para evitar gases). Olham-se no espelho enquanto tiram a gravata, a maquiagem, os vestidos e os smokings, e dizem para si mesmos: nada, nada de importante aconteceu hoje. Talvez amanhã seja melhor.