Ewa está bem vestida, usando um HH que refl ete discrição e elegância ao mesmo tempo. Os dois são encaminhados para os assentos que fi cam diretamente em frente à passarela, ao lado do local onde fi carão os fotógrafos — que agora já começam a entrar e instalar seus equipamentos.
Um jornalista se aproxima e faz a pergunta de sempre:
— Senhor Hussein, qual foi o melhor fi lme que viu até agora?
— Acho prematuro dar alguma opinião — é a resposta de sempre. — Vi muita coisa boa, interessante, mas prefi ro esperar o fi nal do Festival.
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Na verdade, não viu absolutamente nada. Mais tarde irá conversar com Gibson para saber qual “o melhor fi lme da temporada”.
A moça loura, educada e bem vestida, pede que o repórter se afaste. Pergunta se irão participar do coquetel que será oferecido pelo governo da Bélgica logo depois do desfi le. Diz que um dos ministros do governo está presente, e gostaria de conversar com ele. Hamid considera a proposta, já que o país está investindo fortunas para fazer com que seus costureiros ganhem destaque no cenário internacional — e assim possam recuperar o esplendor perdido depois que suas colônias na África desapareceram.
— Sim, talvez vá tomar uma taça de champagne.
— Acho que temos um encontro logo depois com Gibson — corta Ewa.
Hamid entende o recado. Diz para a produtora que havia esquecido esse compromisso, mas que entrará em contato com o ministro mais adiante.
Alguns fotógrafos descobrem que estão ali, e começam a disparar suas câmeras. No momento, são as únicas pessoas que interessam à imprensa. Mais tarde, chegam alguns manequins que já causaram comoção e furor no passado, que posam e sorriem, dão autógrafos para algumas das pessoas mal vestidas na platéia, e fazem o possível para serem notadas — na esperança de verem seus rostos de novo nas páginas impressas. Os fotógrafos se voltam para elas, sabendo que estão fazendo isso apenas para cumprir o dever, dar uma satisfação aos seus editores; nenhuma daquelas fotos será publicada. A moda é o presente; as manequins de três anos atrás
— excluindo as que ainda são capazes de se manter nas manchetes de jornais por causa de escândalos cuidadosamente estudados por suas agentes, ou porque realmente conseguiram destacar-se das demais
— são lembradas apenas por aquelas pessoas que sempre fi cam atrás das cercas de metal na entrada dos hotéis, ou por senhoras que não conseguem acompanhar a velocidade com que as coisas mudam.
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As antigas modelos que acabam de entrar estão conscientes disso (e entenda-se por “antiga” alguém que já atingiu seus 25 anos), e se desejam aparecer não é porque sonhem voltar às passarelas: estão pensando em arranjar um papel em um fi lme, ou participar como apresentadora de um programa de televisão a cabo.
Quem estará na passarela aquele dia, além de Jasmine — sua úni-ca razão de estar ali?
Seguramente, nenhuma das quatro ou cinco top models do mundo, porque estas fazem apenas o que desejam, cobram uma fortuna, e não têm nenhum interesse em aparecer em Cannes para prestigiar o evento dos outros. Hamid calcula que verá duas ou três Classe A, como deve ser o caso de Jasmine, ganhando em torno de 1.500 euros para trabalhar naquela tarde; para isso é preciso ter carisma e, sobretudo, futuro na indústria. Outras duas ou três modelos Classe B, profi ssionais que sabem desfi lar com perfeição, exibem uma silhueta adequada, mas que não tiveram a sorte de participar de eventos paralelos como convidadas especiais para festas dos conglomerados de luxo, custarão entre 800 e 600 euros. O resto do grupo será constituído da Classe C, meninas que acabaram de entrar na roda-viva dos desfi les, e que ganham entre 200 e 300 euros para “conseguir experiência necessária”.
Hamid sabe o que se passa na cabeça de algumas moças desse terceiro grupo: vou vencer. Vou mostrar a todos do que sou capaz.
Serei uma das modelos mais importantes do planeta, mesmo que tenha que seduzir homens mais velhos.
Homens mais velhos, porém, não são tão estúpidos como elas pensam; a maioria é menor de idade, e isso pode conduzir à prisão em quase todos os países do mundo. A lenda é completamente diferente da realidade: ninguém consegue chegar ao topo graças à sua generosidade sexual; é preciso muito mais que isso.
Carisma. Sorte. A agente certa. O momento adequado. E o momento adequado, para os estúdios de tendência, não é o que aquelas 2 4 3
meninas que acabam de entrar no mundo da moda estão pensando.
Leu as pesquisas mais recentes, e tudo indica que o público está cansado de ver mulheres anoréxicas, diferentes, com olhares provocantes e idade indefi nida. As agências de casting (que selecionam manequins) estão buscando algo que parece extremamente difícil de encontrar: a menina do apartamento ao lado. Ou seja, alguém que seja absolutamente normal, que transmita a todos que virem os cartazes e as fotos nas revistas especializadas a sensação de que “eu sou como ela”.
E encontrar uma mulher extraordinária que aparente uma “pessoa normal” é uma tarefa quase impossível.
Foi-se o tempo das manequins que serviam apenas como cabides ambulantes para os estilistas. Claro, é mais fácil vestir alguém magro
— a roupa sempre cai melhor. Foi-se o tempo em que a publicidade para produtos de luxo masculino era feita em cima de lindos modelos; funcionou muito na época yuppie, no fi nal dos anos 80, mas hoje em dia não vende absolutamente mais nada. Ao contrário da mulher, o homem não tem um padrão defi nido de beleza: o que ele quer mesmo encontrar nos produtos que compra é algo que o asso-cie ao companheiro de escritório ou de bebida.
O nome de Jasmine chegou até Hamid como “ela é a verdadeira face da sua nova coleção”, simplesmente porque a viram desfi lar; veio junto de comentários como “tem um carisma extraordinário, e mesmo assim todos podem reconhecer-se nela”. Ao contrário das manequins Classe C, que estão atrás de contatos e de homens que se dizem poderosos e capazes de transformá-las em estrelas, a melhor promoção no mundo da moda — e possivelmente em qualquer coisa que se deseja promover — são os comentários que a indústria faz.
No momento em que alguém está para ser “descoberta”, as apostas começam a aumentar sem que exista nenhuma lógica para isso.
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Às vezes dá certo. Às vezes dá errado. Mas o mercado é assim, não se pode ganhar sempre.
A sala começa a se encher — os assentos da primeira fi la estão reservados, um grupo de homens de terno e mulheres elegantemente vestidas ocupa algumas cadeiras e o resto continua vazio. O público é colocado na segunda, terceira e quarta fi las. Uma famosa modelo
— casada com um jogador de futebol, que já fez muitas viagens ao Brasil porque “adora o país”, é agora o centro das atenções dos fo-tógrafos. Todo mundo sabe que “viagem ao Brasil” é sinônimo de
“cirurgia estética”, mas ninguém ousa comentar abertamente; entretanto, depois de algum tempo de convivência, perguntam discretamente se, além de visitarem as belezas de Salvador e dançarem no carnaval do Rio, podem encontrar ali algum médico que tenha experiência em operação plástica. Um cartão de visitas troca rapidamente de mãos, e a conversa termina por ali.
A menina loura e gentil aguarda que os profi ssionais da imprensa terminem seu trabalho (também estão perguntando à modelo qual o melhor fi lme que viu até agora), em seguida a conduz para o único assento livre ao lado de Hamid e Ewa. Os fotógrafos se aproximam e tiram dezenas de fotos do trio — o grande costureiro, sua esposa, e a modelo transformada em dona de casa.
Alguns jornalistas querem saber o que acha do trabalho da estilista. Ele já está acostumado com este tipo de pergunta: