— Vim para conhecer. Escutei que tem muito talento.
Os jornalistas insistem, como se não tivessem escutado a resposta.
São belgas em sua quase totalidade — a imprensa francesa ainda não está interessada no tema. A moça loura e simpática pede que deixem os convidados em paz.
Eles se afastam. A ex-modelo que sentou ao seu lado tenta puxar conversa, dizendo que adora tudo o que faz. Ele agradece gentilmente; se ela esperava como resposta “precisamos conversar depois 2 4 5
do desfi le”, a esta altura deve estar desapontada. Mesmo assim, ela começa a contar o que tem acontecido em sua vida — as fotos, os convites, as viagens.
Ele escuta tudo com infi nita paciência, mas assim que tem uma chance (ela acaba de virar-se para falar com alguém) vira-se para Ewa pedindo que o salve deste diálogo de surdos. Sua mulher, po-rém, está mais estranha que nunca, e recusa-se a conversar; a única saída é ler o que diz o folheto explicativo do desfi le.
A coleção é uma homenagem a Ann Salens, considerada a pionei-ra da moda belga. Começou no fi nal dos anos 60, com uma pequena boutique, mas logo entendeu que a maneira de se vestir criada pelos jovens hippies que viajavam de todo mundo em direção à Amsterdã tinha um potencial gigantesco. Capaz de enfrentar — e vencer — os sóbrios estilos que vigoravam na burguesia da época, terminou vendo seu trabalho usado por alguns dos ícones, como a rainha Paola, ou a grande musa do movimento existencialista francês, a cantora Juliette Gréco. Foi uma das criadoras do “desfi le-show”, que misturava as roupas na passarela com espetáculos de luz, som, e arte.
Mesmo assim, não ganhou muita projeção além das fronteiras do seu país. Sempre tivera um medo gigantesco de câncer; e como diz a Bíblia em seu livro de Jó, “tudo o que eu mais temia me aconteceu”.
Morreu da doença que mais a assustava, enquanto via seus negócios indo por água abaixo por causa da sua absoluta falta de talento para lidar com dinheiro.
E como tudo que acontece em um mundo que se renova a cada seis meses, foi completamente esquecida. Era muito corajosa a atitude da estilista que em poucos minutos estaria mostrando sua cole-
ção: voltar ao passado, em vez de tentar inventar o futuro.
Hamid guarda o folheto no bolso; se Jasmine não fosse aquilo que esperava, iria conversar com a estilista e ver se tem algum projeto 2 4 6
que poderiam desenvolver em comum. Sempre há espaço para novas idéias — desde que os concorrentes estejam sob sua supervisão.
Olha em torno: os refl etores estão bem posicionados, é relativamente boa a quantidade de fotógrafos presentes — não esperava que isso acontecesse. Talvez a coleção seja realmente digna de se ver, ou talvez o governo belga tenha usado toda a sua infl uência para trazer a imprensa, oferecendo passagens e hospedagem. Existe ainda uma possibilidade para todo aquele interesse, mas Hamid torce para estar errado: Jasmine. Se deseja levar adiante os seus planos, ela precisa ser uma desconhecida completa do grande público. Até o momento, escutou apenas comentários de gente ligada ao meio em que trabalha. Caso seu rosto já tivesse aparecido em muitas revistas, seria uma perda de tempo contratá-la. Primeiro, porque alguém já teria chegado antes. Segundo, estaria fora de questão associá-la com algo novo.
Hamid faz os cálculos; aquele evento não deve estar custando barato, mas o governo belga está tão certo como o sheik: moda para as mulheres, esporte para os homens, celebridades para ambos os sexos, esses são os únicos assuntos que interessam a todos os mortais, e os únicos que podem projetar a imagem de um país no cenário internacional. Claro, no caso específi co da moda, existe a conversa
— que pode demorar anos — com a Federação. Mas um dos diri-gentes está sentado ao lado dos políticos belgas; pelo visto, não estão com vontade de perder tempo.
Outros VIPs chegam, sempre acompanhados da simpática moça loura. Parecem um pouco desorientados, não sabem exatamente o que estão fazendo ali. Estão bem vestidos demais, deve ser o primeiro desfi le a que assistem na França, vindos diretamente de Bruxelas.
Com toda certeza não fazem parte da fauna que neste momento inunda a cidade por causa do festival de cinema.
Cinco minutos de atraso. Ao contrário da Semana de Moda de Paris, na qual praticamente nenhum desfi le começa na hora marca-2 4 7
da, muitas outras coisas diferentes estão acontecendo na cidade, e a imprensa não pode fi car esperando por muito tempo. Mas logo se dá conta de que está errado: a maior parte dos jornalistas presentes foi conversar e entrevistar os ministros; são quase todos estrangeiros, vindos do mesmo país. Política e moda só combinam em uma situação como essa.
A simpática menina loura se dirige até onde estão concentrados, e pede que voltem aos seus lugares: o espetáculo vai começar. Hamid e Ewa não trocam uma palavra. Ela não parece contente nem descontente — e isso é o pior de tudo. Se reclamasse, se sorrisse, se dissesse alguma coisa! Mas nada, nenhum sinal do que está acontecendo no seu interior.
Melhor se concentrar no interior do painel que vê ao fundo, de onde sairão os modelos. Ali pelo menos ele sabe o que está se passando.
Há alguns minutos, as modelos retiraram todas as roupas de baixo, fi caram completamente nuas — para não deixar marcas nos vestidos que vão apresentar. Já colocaram o primeiro, e aguardam que as luzes se apaguem, a música comece, e uma pessoa — geralmente uma mulher — toque em suas costas, indicando o tempo exato para saírem em direção aos refl etores e ao público.
As modelos classes A, B, e C têm diferentes graus de nervosismo
— sendo que as menos experientes são as mais excitadas. Algumas fazem uma prece, outras procuram ver através da cortina se algum conhecido está presente, se o pai ou a mãe conseguiram o lugar adequado. Devem ser dez ou doze, cada uma com sua foto diante do local onde estão penduradas em ordem as roupas que trocam em questão de segundos, voltando para a passarela completamente relaxadas, como se estivessem usando aquele modelo desde o início da tarde. Os últimos retoques já foram dados na maquiagem, nos cabelos.
Repetem para si mesmas:
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“Não posso escorregar. Não posso tropeçar na bainha. Fui escolhida pessoalmente pela estilista entre sessenta modelos. Estou em Cannes. Alguém importante deve estar na platéia. Sei que HH está presente, e pode me escolher para sua marca. Dizem que o local está cheio de fotógrafos e jornalistas.
“NÃO POSSO SORRIR porque assim diz a regra. Os pés devem seguir uma linha invisível. Preciso andar como se estivesse marchan-do, por causa do salto! Não importa que o andar seja artifi cial, que não me sinta bem — não posso me esquecer disso!
“Tenho que chegar na marcação, virar para um lado, parar por dois segundos, e voltar logo em seguida, com a mesma velocidade, sabendo que assim que eu desaparecer de cena haverá alguém esperando para tirar minha roupa, colocar a próxima, sem que eu sequer possa olhar no espelho! Preciso confi ar que tudo vai dar certo. Preciso mostrar não apenas meu corpo, não apenas meu vestido, mas a força do meu olhar!”
Hamid olha para o teto: ali está a marcação, um foco de luz mais intenso que os outros. Se a modelo andar mais adiante, ou parar antes, não será bem fotografada; neste caso, os editores de revista — melhor dizendo, os diretores de revistas belgas — escolherão outro manequim. A imprensa francesa a esta altura está na frente dos hotéis, no tapete vermelho, nos coquetéis de fi nal de tarde, ou comendo um sanduíche e se preparando para o principal jantar de gala daquela noite.
As luzes do salão se apagam. Os refl etores da passarela se acendem.
O grande momento chega.
Um poderoso sistema de som enche o ambiente com uma trilha sonora de músicas dos anos 60 e 70. Aquilo transporta Hamid para um outro mundo que jamais pôde conhecer, mas de que havia escutado falar. Sentia certa nostalgia do que nunca conhecera, e alguma revolta — por que não vivera o grande sonho dos jovens que percor-riam o mundo naquela época?