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Entra a primeira modelo, e a visão se mistura com o som — a roupa colorida, cheia de vida, de energia, contando uma história que aconteceu há muito tempo, mas que o mundo parecia ainda gostar de escutar outras vezes. Ao seu lado, ouve as dezenas, centenas de cliques das máquinas fotográfi cas. As câmeras estão gravando. A primeira modelo faz o desfi le perfeito — vem até o ponto de luz, gira para a direita, permanece dois segundos, e volta. Terá aproximadamente quinze segundos até chegar aos bastidores — ali desmonta sua pose e sai correndo em direção ao cabide onde está a próxima roupa, despe-se com rapidez, veste-se mais rápido ainda, toma seu lugar na fi la, e está pronta para o próximo passo. A estilista assiste a tudo através de um circuito interno de TV, mordendo os lábios e esperando que ninguém escorregue, que o público entenda o que quer dizer, que termine sendo aplaudida no fi nal, que o emissário da Federação se deixe impressionar.
O desfi le continua. Na posição que está, tanto Hamid como as câmeras de TV vêem o porte elegante, as pernas com passos fi rmes.
Para as pessoas sentadas nas fi las laterais — e que não estão acostumadas com desfi le, como deve ser o caso da maioria dos VIPs ali presentes — há uma sensação estranha: por que “marcham” em vez de andar, como a maioria dos manequins que estão acostumadas a ver nos programas de moda? Seria isso uma invenção da estilista para tentar dar um toque de originalidade?
Não, responde silenciosamente Hamid para si mesmo. Por causa dos saltos altos. Porque assim têm fi rmeza sufi ciente a cada passo. O
que as câmeras mostram — porque estão fi lmando de frente — não é exatamente o que acontece no mundo real.
A coleção é melhor do que pensava — uma volta no tempo com toques contemporâneos e criativos. Nada de excessos — porque o segredo da moda é o mesmo da cozinha: saber dosar bem os ingre-dientes usados. Flores e contas que relembram os anos loucos, mas 2 5 0
foram colocadas de tal forma que parecem absolutamente modernas. Já seis manequins desfi laram pela passarela, e em uma delas notou um ponto no joelho, que a maquiagem não consegue disfar-
çar: minutos antes devia ter aplicado ali uma dose de heroína, para acalmar-se e para controlar o apetite.
De repente, Jasmine aparece. Usa uma blusa branca de mangas compridas, toda bordada à mão, uma saia também branca que vai abaixo dos joelhos. Caminha com segurança, e ao contrário das que passaram antes, sua seriedade não é estudada: é natural, absolutamente natural. Hamid lança um olhar rápido para a platéia: todos na sala parecem hipnotizados pela presença de Jasmine, ninguém dá atenção à modelo que está saindo ou entrando depois que ela completa seu percurso e começa a retornar ao camarim.
“Perfeita!”
Em suas duas próximas aparições na passarela, ele mantém os olhos em cada detalhe do seu corpo; e vê que ele irradia algo muito mais forte do que suas curvas bem desenhadas. Como poderia defi nir isso? O casamento do Céu e do Inferno, o Amor e o Ódio andando de mãos dadas.
Como qualquer desfi le, aquele não dura mais que quinze minutos
— embora tenha custado meses de trabalho para ser concebido e montado. No fi nal a estilista entra em cena, agradece os aplausos, as luzes se acendem, a música pára — e só então se dá conta de que estava adorando aquela trilha sonora. A moça simpática torna a vir até eles e dizer que alguém do governo belga está muito interessado em uma conversa. Ele abre sua carteira de couro tira um cartão, diz que está hospedado no Hotel Martinez, e que terá muito prazer em marcar um encontro para o dia seguinte.
— Mas gostaria muito de conversar com a estilista e a modelo negra. Você por acaso sabe em que jantar estarão hoje à noite? Posso esperar aqui por uma resposta.
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Torceu para que a simpática loura voltasse logo. Os jornalistas se aproximaram e iniciaram a série de perguntas de sempre: melhor dizendo, a mesma pergunta repetida por jornalistas diferentes:
“O que achou do desfi le?”
— Muito interessante — a resposta também era sempre a mesma.
— E o que isso quer dizer?
Com a delicadeza de um profi ssional experiente, Hamid movia-se em direção ao jornalista seguinte. Nunca tratar mal a imprensa; mas nunca responder a nenhuma pergunta, dizer apenas o que é conveniente naquele momento.
A simpática loura voltou. Não, não iam ao grande jantar de gala daquela noite. Apesar de todos os ministros presentes, a política do Festival era ditada por outro tipo de poder.
Hamid disse que irá mandar entregar em mãos os convites necessários, o que é imediatamente aceito. Com toda certeza, a estilista esperava esse tipo de resposta, e estava consciente do produto que tinha em mãos.
Jasmine.
Sim, ela é a pessoa. Raramente iria utilizá-la em um desfi le, porque é mais forte que as roupas que está usando. Mas para ser “o rosto visível de Hamid Hussein”, não existia ninguém melhor.
Ewa torna a ligar o celular na saída. Segundos depois aparece um envelope voando por um céu azul, descendo na base da tela, e abrindo-se. Tudo isso para dizer: “Você tem uma mensagem.”
“Que animação ridícula”, pensa Ewa.
De novo o número bloqueado. Tem dúvidas se deve ou não abrir o texto, mas a curiosidade é mais forte que o medo.
— Pelo visto, algum admirador descobriu seu telefone — brinca Hamid. — Nunca recebeu tantas mensagens como hoje.
— Pode ser.
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Na verdade, gostaria de dizer: “Será que você não percebe? Depois de dois anos juntos, não consegue ver o meu estado de terror, ou pensa que estou apenas em meu período menstrual?”
Finge ler despreocupadamente o que está escrito: Destruí outro mundo por sua causa. E já começo a me perguntar se vale a pena fazer isso, porque parece que você não está entendendo nada. Seu coração está morto.
— Quem é? — pergunta Hamid.
— Não tenho a menor idéia. Não mostra o número. Mas sempre é bom ter admiradores desconhecidos.
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5:15 PM
Três crimes. Todas as estatísticas haviam sido superadas em apenas algumas horas, e mostravam um aumento de 50% no total.
Vai até o carro e usa a freqüência especial do rádio.
— Existe um assassino em série na cidade.
A voz murmurou algo do outro lado. O barulho da estática corta algumas palavras, mas Savoy entende o que diz.
— Não tenho certeza. Mas não tenho dúvida tampouco.
Mais comentários, mais estática.
— Não sou louco, comandante, e não vivo entrando em contra-dições. Por exemplo: não tenho certeza de que meu salário vai ser depositado no fi nal do mês, e no entanto não tenho dúvidas: será que me explico?
Estática e voz irritada do outro lado.
— Não estou discutindo aumento de salário, mas certezas e dúvidas podem conviver, principalmente em uma profi ssão como a nossa. Sim, deixemos este assunto de lado e vamos ao que nos interessa.
É bem possível que os telejornais noticiem três crimes, porque o sujeito no hospital acaba de morrer. Evidente que apenas nós sabemos que todos foram cometidos com técnicas bastante sofi sticadas, e por causa disso ninguém vai suspeitar que estejam interligados. Mas de repente Cannes começará a ser vista como uma cidade insegura. E se isso continuar amanhã, começarão as especulações a respeito de um único assassino. O que deseja que faça?
Comentários alterados do comandante.
— Sim, estão aqui perto. O rapaz que testemunhou o assassinato está contando tudo para eles; nestes dez dias temos fotógrafos e jornalistas em todos os buracos. Achei que iam estar todos no tapete vermelho, mas, pelo visto, estava enganado; acho que lá tem muito repórter e pouco assunto.
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Mais comentários alterados. Ele tira um bloco do bolso e anota um endereço.