Выбрать главу

— Está bem. Sairei daqui e irei até Monte Carlo conversar com a pessoa que me indica.

A estática parou: a pessoa do outro lado da linha havia desligado.

Savoy caminha até o fi nal do píer, coloca a sirene no teto do seu carro em volume máximo, e sai dirigindo como um louco — esperando atrair os repórteres para um outro crime inexistente. Eles conhecem o truque e não se movem, continuam entrevistando o rapaz.

Estava começando a fi car excitado. Finalmente poderia deixar a papelada toda para ser preenchida por um subalterno, e dedicar-se àquilo que sempre sonhou: desvendar assassinatos que desafi am a lógica. Gostaria de ter razão — um assassino em série está na cidade, e começa a aterrorizar seus habitantes. Por causa da velocidade com que a informação é difundida nos dias de hoje, em pouco tempo estaria diante dos holofotes, explicando que “nada está ainda provado”, mas de tal maneira que ninguém acredite por completo, e assim os holofotes continuam brilhando até que o criminoso seja descoberto. Porque apesar de todo o brilho e glamour, Cannes ainda é uma pequena cidade do interior — onde todos sabem o que se passa, e não será difícil encontrar o criminoso.

Fama. Celebridade.

Será que está pensando apenas em si mesmo, e não no bem-estar dos cidadãos?

Mas o que há de errado em buscar um pouco de glória, quando há anos é obrigado a conviver com estes doze dias em que todo mundo quer brilhar além de suas próprias capacidades? Isso termina conta-giando todo mundo. Todo mundo gosta de ver o seu trabalho reconhecido pelo público; os cineastas ali estão fazendo a mesma coisa.

“Deixe de pensar na glória; ela virá por si mesma, desde que você execute bem seu trabalho. Além do mais, a fama é caprichosa: ima-2 5 6

gine se termina sendo considerado incapaz da missão que lhe foi confi ada? A humilhação também será pública.

“Concentre-se.”

Depois de trabalhar quase vinte anos na polícia ocupando todos os tipos de cargo, sendo promovido por mérito, lendo montanhas de relatórios e documentos, entendera que na maior parte das vezes em que chegam a um criminoso, a intuição é sempre tão importante quanto a lógica. O perigo neste exato momento em que se dirige para Monte Carlo não é o assassino — que deve estar exausto por causa da gigantesca quantidade de adrenalina que foi misturada com seu sangue, e apreensivo, porque foi reconhecido por alguém. O

grande inimigo é a imprensa. Os jornalistas seguem sempre o mesmo princípio de misturar técnica com intuição: se conseguissem estabelecer um laço, por menor que seja, uma relação entre três assassinatos, a polícia perderia por completo o controle e o Festival pode se transformar em um caos absoluto, com gente não querendo mais sair nas ruas, estrangeiros viajando antes da hora, comerciantes fazendo protestos pela inefi ciência da polícia, manchetes em todos os jornais do mundo — afi nal de contas um assassino em série é sempre muito mais interessante na vida real do que nas telas.

E nos anos seguintes, o Festival de Cinema já não seria o mesmo: o mito do terror se instalaria, o luxo e o glamour escolheriam um lugar mais apropriado para mostrar seus produtos, e pouco a pouco toda aquela festa de mais de sessenta anos de existência terminaria se transformando em um evento menor, longe dos holofotes e das revistas.

Tem uma grande responsabilidade. Melhor dizendo, tem duas grandes responsabilidades: a primeira é saber quem está cometendo aqueles crimes, e impedi-lo antes que mais um cadáver apareça em sua jurisdição. A segunda é controlar a imprensa.

Lógica. Precisa pensar com lógica. Qual daqueles repórteres presentes, na sua maior parte vindos de cidades distantes, tem a exata 2 5 7

noção de quantos crimes são cometidos ali? Quantos deles se preo-cupariam em telefonar para a Guarda Nacional e procurar saber as estatísticas?

Resposta lógica: nenhum. Pensam apenas no que acaba de acontecer. Estão excitados porque um grande produtor teve um ataque cardíaco durante um dos almoços tradicionais que acontecem no período do Festival. Ninguém ainda sabe que fora envenenado — o relatório do legista está no banco de trás do seu carro. Ninguém ainda sabe — e possivelmente não saberá nunca — que fazia parte de um grande esquema de lavagem de dinheiro.

Resposta não lógica: sempre tem alguém que pensa diferente dos outros. É preciso, assim que for possível, dar todas as explicações necessárias, organizar uma entrevista coletiva, mas falar apenas do crime da produtora americana no banco de praça; assim, os outros incidentes serão momentaneamente esquecidos.

Uma mulher importante no mundo do cinema é assassinada.

Quem se interessará pela morte de uma menina sem qualquer expressão? Neste caso, todos vão chegar à mesma conclusão que ele, logo no início das investigações: excesso de drogas.

Não há risco.

Voltemos à produtora de cinema; talvez não seja tão importante como imagina, ou a esta altura o comissário já estaria chamando seu telefone celular. Fatos: um homem bem vestido, de aproximadamente 40 anos, cabelos começando a fi car grisalhos, que fi cara conversando com ela algum tempo enquanto admiravam o horizonte e eram observados pelo jovem escondido atrás das pedras. Depois de enfi ar um estilete com a técnica de um cirurgião, sai caminhando lentamente, e agora já se misturava com centenas, milhares de pessoas parecidas com ele.

Desliga a sirene por alguns instantes, e telefona para o inspetor-substituto que permanecera na cena do crime, e que agora devia estar sendo interrogado em vez de interrogar. Pede para que respon-2 5 8

da aos seus carrascos, jornalistas que sempre atrapalham com suas conclusões precipitadas, que tinha “quase certeza” de que havia sido um crime passional.

— Não diga que está certo. Diga que as circunstâncias podem indicar isso, já que os dois estavam juntos, namorando. Não se trata de roubo ou de vingança, mas de um dramático acerto de contas de problemas pessoais.

“Cuidado para não mentir; suas declarações estão sendo gravadas, e isso poderá ser usado mais tarde contra você.”

— E por que devo explicar isso?

— Porque as circunstâncias indicam. E quanto mais cedo tiverem algum tipo de satisfação, melhor para nós.

— Estão perguntando qual foi a arma do crime.

— “Tudo indica” que foi um punhal, como disse a testemunha.

— Mas ele não tem certeza.

— Se nem a testemunha sabe o que viu, o que você pode afi rmar além do “tudo indica”? Assuste o rapaz; diga também para ele que suas palavras estão sendo gravadas pelos jornalistas, e mais tarde poderão ser usadas contra ele.

Desliga. Daqui a pouco o inspetor-substituto ia começar com perguntas inconvenientes.

“Tudo indica” que foi crime passional, mesmo que a vítima tivesse acabado de chegar na cidade, vinda dos Estados Unidos. Mesmo que estivesse hospedada sozinha em seu quarto de hotel. Mesmo que, pelo pouco que conseguiram apurar, seu único compromisso fora um encontro sem maiores conseqüências durante a manhã, no mercado aberto de fi lmes que se encontra ao lado do Palácio do Congresso. Os jornalistas não teriam acesso a todas essas informações.

E havia algo muito mais importante que só ele sabia — ninguém mais em sua equipe, ninguém mais no mundo.

A vítima estivera no hospital. Conversaram um pouco e a mandara embora — para a morte.

2 5 9

Torna a ligar a sirene, para fazer com que o ruído ensurdecedor afaste qualquer sentimento de culpa. Não, não fora ele quem enfi ara o estilete em seu corpo.

Claro que pode pensar: “Tal senhora estava ali, na sala de espera, porque tem relação com a máfi a da droga, e queria saber se realmente o assassinato tinha sido bem-sucedido.” Isso é coerente com a

“lógica”, e se comunicar o encontro casual ao seu superior, começa-rão a investigar nessa direção. Claro que inclusive pode ser verdade; fora morta com requintes de sofi sticação, como acontecera com o distribuidor de Hollywood. Ambos eram americanos. Ambos tinham sido assassinados por instrumentos pontiagudos. Tudo indicava que se tratava do mesmo grupo, e que os dois tinham relação entre si.