Quem sabe está enganado, e não existe nenhum assassino em sé-
rie atuando na cidade?
Porque a menina encontrada no banco, com marcas de asfi xia provocadas por mãos experientes, talvez tivesse contato na noite anterior com alguém do grupo que viera para encontrar-se com o produtor. Talvez vendesse outras além das mercadorias que costumava expor na calçada: drogas.
Imagina a cena: os estrangeiros chegam para acertar contas. Em um dos muitos bares, o distribuidor local apresenta um deles para a linda menina de sobrancelhas grossas, “que trabalha conosco”. Terminam indo para a cama, mas o estrangeiro bebeu mais do que devia, a língua está solta, a Europa tem um ar diferente, perde o controle e fala mais do que devia. No dia seguinte, logo de manhã, dá-se conta do erro e encarrega o assassino profi ssional — que sempre acompanha bandos como esses — de resolver o problema.
Enfi m, tudo perfeitamente claro, se encaixando, sem deixar margens para dúvidas.
Tudo se encaixa tão claramente que, por essa razão, não faz nenhum sentido. Não era possível que um cartel de cocaína tivesse decidido acertar suas contas em uma cidade que, por causa do evento 2 6 0
que estava acontecendo ali, tinha convocado um número extra de policiais vindos de todo o resto do país, que se somam aos guarda-costas privados, aos seguranças contratados para as festas, aos detetives que se encarregavam de vigiar 24 horas por dia as caríssimas jóias que circulavam pelas ruas e pelos salões.
E se esse fosse o caso, também seria bom para sua carreira: os acertos de contas da máfi a trazem tantos holofotes como a presença de um assassino em série.
Pode relaxar; seja qual for o caso, irá ganhar a notoriedade que sempre achou que merecia.
Desliga a sirene. Em meia hora já percorreu quase toda a auto-estrada, cruzou uma barreira invisível e entrou em outro país, está a apenas alguns minutos de seu destino. Mas sua cabeça está pensando em coisas que, teoricamente, deveriam ser proibidas.
Três crimes no mesmo dia. Suas orações estavam com as famílias dos mortos, como dizem os políticos. Evidentemente que tem consciência de que o Estado o paga para manter a ordem, e não para fi car contente quando ela é quebrada de maneira tão violenta. A esta altura o comissário deve estar dando socos na parede, consciente da gigantesca responsabilidade de resolver dois problemas: encontrar o criminoso (ou criminosos, porque talvez ainda não esteja convencido de sua tese), e afastar a imprensa. Todos estão muito preocupados, as delegacias da região já foram avisadas, os carros estão recebendo através do computador um retrato falado do assassino. Algum polí-
tico possivelmente terá seu merecido repouso interrompido, porque o chefe de polícia acha o tema muito delicado, e quer passar a responsabilidade para esferas mais altas.
O político difi cilmente cairá na armadilha, dizendo apenas que façam a cidade voltar ao normal o mais breve possível, já que “mi-lhões, ou centenas de milhões de euros dependem disso”. Não quer aborrecer-se; tem assuntos mais importantes a resolver, como a mar-2 6 1
ca de vinho que irão servir aquela noite aos convidados de determinada delegação estrangeira.
“E eu? Estou no caminho certo?”
Os pensamentos proibidos voltam: ele está feliz. O momento mais importante em toda a sua carreira dedicada a preencher papéis e cuidar de assuntos irrelevantes. Nunca imaginou que uma situação semelhante o deixaria no estado eufórico em que se encontra agora
— o verdadeiro detetive, o homem que tem uma teoria que vai contra a lógica, que terminará sendo condecorado porque foi o primeiro a ver aquilo que ninguém mais conseguia enxergar. Não confessará a ninguém, nem mesmo à sua mulher — que fi caria horrorizada com a atitude do marido, certa de que perdera a razão por causa do perigoso ambiente de trabalho em que vivia.
“Estou contente. Excitado.”
Suas orações estavam com as famílias dos mortos; seu coração, depois de alguns anos de inércia, voltava ao mundo dos vivos.
Ao contrário do que Savoy havia imaginado — uma grande biblioteca cheia de livros empoeirados, pilhas de revistas pelos cantos, uma mesa coberta de papéis desordenados — o escritório era imaculadamente branco, algumas luminárias de bom gosto, uma confortável poltrona, a mesa transparente com uma gigantesca tela de computador.
Completamente vazia, exceto pelo teclado sem fi o e por um pequeno bloco de notas com uma luxuosa caneta Montegrappa sobre ele.
— Tire esse sorriso do rosto, e mostre algum ar de preocupação
— diz o homem de barbas brancas, de paletó tweed apesar do calor, gravata, calça bem cortada, o que não combina de maneira nenhuma com a decoração do seu escritório ou com o tema que estavam discutindo.
— Do que o senhor está falando?
— Sei como se sente. Está diante do caso de sua vida, em um lugar onde nunca acontece nada. Passei pelo mesmo confl ito interior 2 6 2
quando vivia e trabalhava em Penycae, Swansea, West Glamorgan, SA9 1GB, Grã-Bretanha. E foi graças a um assunto semelhante que terminei sendo transferido para a Scotland Yard em Londres.
“Paris. Esse é o meu sonho.” Mas não diz nada. O estrangeiro o convida para sentar-se.
— Espero que realize seu sonho profi ssional. Muito prazer, Stanley Morris.
Savoy resolve mudar de assunto.
— O comissário teme que a imprensa acabe especulando a respeito de um assassino em série.
— Podem especular o que quiserem, estamos em um país livre. É
o tipo de assunto que vende jornal, transformando a vida pacata de aposentados em algo excitante, que acompanham detalhadamente em todos os meios de comunicação possíveis qualquer novidade sobre o assunto, com uma mistura de medo e de certeza que “não vai acontecer conosco”.
— Espero que o senhor tenha recebido uma descrição detalhada das vítimas. Na sua opinião, isso caracteriza um assassino em sé-
rie, ou estamos diante de alguma vingança dos grandes cartéis do tráfi co?
— Sim, recebi. Por sinal, queriam enviar por fax — este instrumento que não tem mais qualquer utilidade nos dias de hoje. Pedi que mandassem por correio eletrônico, mas sabe o que responde-ram? Que não estão acostumados. Imagine! Uma das forças policiais mais bem equipadas do mundo, ainda usa fax!
Savoy move-se na cadeira, demonstrando alguma impaciência. Não está ali para discutir os avanços e recuos da tecnologia moderna.
— Vamos ao trabalho — diz o Dr. Morris, que havia se transformado em uma celebridade na Scotland Yard, resolvera passar sua aposentadoria no sul da França, e que possivelmente estava tão contente quanto ele porque saía da rotina aborrecida das leituras, dos concertos, dos chás e jantares benefi centes.
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— Como nunca estive diante de um caso desses, talvez seja necessário saber primeiro se o senhor concorda com a minha teoria de que há um único criminoso em ação. E me diga em que terreno estou pisando.
Dr. Morris explica que teoricamente está certo: três crimes com algumas características em comum são sufi cientes para caracterizar um assassino em série. Normalmente, eles se passam na mesma área geográfi ca (neste caso, a cidade de Cannes), e…
— Então, o assassino em massa...
Dr. Morris o interrompe e pede que não use termos incorretos.
Assassinos em massa são terroristas ou adolescentes imaturos que entram em uma escola, em uma lanchonete e atiram em tudo o que vêem — para em seguida terminar sendo mortos pela polícia ou cometendo suicídio. Têm preferência por arma de fogo e bombas, capazes de causar o maior dano possível no menor espaço de tempo
— geralmente dois a três minutos no máximo. Estas pessoas não se importam com as conseqüências de seus atos — porque já conhecem o fi nal da história.