No inconsciente coletivo, o assassino em massa é mais fácil de ser aceito, já que é considerado um “desequilibrado mental”, e portanto é fácil estabelecer uma diferença entre “nós” e “ele”. O assassino em série, porém, lida com algo muito mais complicado — o instinto destrutivo que toda pessoa tem dentro de si.
Faz uma pausa.
— Você já leu O médico e o monstro, de Robert Louis Ste-venson?
Savoy explicou que tinha pouco tempo para leitura, já que trabalhava muito. O olhar de Morris tornou-se glacial.
— E você acha que eu não trabalho?
— Não foi isso que quis dizer. Escuta, senhor Morris, estou aqui em missão de urgência. Prefi ro não discutir tecnologia ou literatura.
Quero saber o que concluiu dos relatórios.
2 6 4
— Sinto muito, mas neste caso temos que ir para a literatura. O
médico e o monstro é a história de um sujeito absolutamente normal, Dr. Jekyll, que em certos momentos tem impulsos destruidores in-controláveis e transforma-se em alguém diferente, Mr. Hyde. Todos nós temos esses instintos, senhor inspetor. Quando o assassino em série está atuando, ele não apenas ameaça a nossa segurança; ameaça também nossa sanidade. Porque cada ser humano na face da terra, querendo ou não, tem uma imenso poder destruidor dentro de si mesmo, e muitas vezes gostaria de experimentar a sensação mais reprimida pela sociedade — tirar uma vida.
“As razões podem ser muitas: idéia de que está consertando o mundo, vingança de algo remoto que aconteceu na infância, ódio re-primido pela sociedade, etc. Mas, consciente ou inconscientemente, todo ser humano já pensou nisso — mesmo que tenha sido durante a sua infância.”
Outro silêncio proposital.
— Suponho que o senhor, independente do cargo que ocupa, já deve saber exatamente que sensação é essa. Já esquartejou algum gato, ou teve um prazer mórbido em atear fogo em insetos que não lhe fazem mal nenhum.
É a vez de Savoy devolver o olhar glacial, e não dizer nada. Morris, porém, interpreta o silêncio como um “sim”, e continua falando com a mesma descontração e superioridade de antes:
— Não creia que vá encontrar uma pessoa visivelmente desequili-brada, cabelos desgrenhados e um sorriso de ódio no rosto. Se lesse um pouco mais — embora saiba que é uma pessoa ocupada... — eu sugeriria um livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém. Ali, ela analisa o julgamento de um dos maiores assassinos em série da história. Claro que no caso em questão ele precisou de ajudantes, ou não teria levado a cabo a gigantesca tarefa que lhe incumbiram de executar: purifi cação da raça humana. Um momento.
2 6 5
Mexe na tela do seu computador. Sabe que o homem que está diante dele quer apenas resultados, o que é absolutamente impossí-
vel nesse terreno. Precisa educá-lo, prepará-lo para os difíceis dias que virão.
— Aqui está. Arendt faz uma detalhada análise do julgamento de Adolf Eichmann, responsável pelo extermínio de seis milhões de ju-deus na Alemanha nazista. Na página 25, diz que meia dúzia de psiquiatras encarregados de examiná-lo concluíram que era uma pessoa comum. Seu perfi l psicológico, sua atitude com relação à mulher, fi -
lhos, mãe e pai, eram completamente dentro de todos os padrões sociais que se espera de um homem responsável. E Arendt continua:
“O problema com Eichmann é que se parecia um ser humano como muitos outros, onde não se nota nenhuma tendência perver-tida ou sádica. Na verdade, são pessoas absolutamente normais (...) Do ponto de vista de nossas instituições, sua normalidade era tão aterrorizadora como os crimes que cometeu.”
Agora pode entrar no assunto.
— Notei pelas autópsias que não houve qualquer tentativa de abuso sexual das vítimas...
— Dr. Morris, eu tenho um problema a resolver, e preciso fazer isso rapidamente. Quero ter certeza de que estamos diante de um assassino em série. É óbvio que ninguém podia violar um homem em uma festa ou uma moça em um banco de praça.
É como se não dissesse nada. O outro ignora suas palavras e continua:
— ...o que é comum em muitos dos assassinos em série. Alguns deles têm várias características, digamos, “humanas”. Enfermeiras que matam pacientes em estado terminal, mendigos que são assassinados e ninguém se dá conta, funcionários do Bem-estar Social que, compadecidos da difi culdade de certos pensionistas idosos e invá-
lidos, chegam à conclusão que uma outra vida será muito melhor 2 6 6
para eles — um caso assim aconteceu recentemente na Califórnia.
Há também os que procuram reorganizar a sociedade: neste caso, as prostitutas são as maiores vítimas.
— Senhor Morris, eu não vim aqui...
Desta vez, Morris levanta ligeiramente a voz.
— E eu tampouco o convidei. Estou fazendo um favor. Se quiser, pode ir embora. Se fi car, pare de interromper a cada minuto o meu raciocínio; quando desejamos capturar a pessoa, precisamos entender como ela pensa.
— Então o senhor realmente acha que é um assassino em série?
— Ainda não terminei.
Savoy controlou-se. E por que estava com tanta pressa? Não seria interessante deixar que a imprensa fi zesse o estardalhaço de sempre, antes de vir com a solução desejada?
— Está bem. Continue.
Morris ajeita-se na cadeira e move o monitor de modo que Savoy possa ver o que está ali: na gigantesca tela, uma gravura, possivelmente do século XIX.
— Esse é o mais famoso de todos os assassinos em série: Jack, o Estripador. Atuou em Londres, apenas na segunda metade do ano de 1888, terminando com a vida de cinco a sete mulheres em lugares públicos ou semipúblicos. Abria seus ventres, extraía seus intestinos e seus úteros. Jamais o encontraram. Transformou-se em um mito, e até hoje procura-se sua verdadeira identidade.
A tela do computador mudou para algo que parecia um mapa astral.
— Essa era a assinatura de Zodíaco. Matou comprovadamente cinco casais na Califórnia, durante dez meses; jovens que paravam seus carros em lugares isolados para desfrutar de um pouco de intimidade. Enviava uma carta para a polícia com este símbolo, parecido com a cruz celta. Até hoje, ninguém conseguiu saber quem era.
2 6 7
“Tanto no caso de Jack, como no caso de Zodíaco, estudiosos acreditam que eram pessoas que procuravam restabelecer a moral e o bom costume em suas regiões. Tinham, digamos assim, uma missão a cumprir. E ao contrário do que a imprensa quer fazer crer com seus nomes criados para assustar, como ‘O Estrangulador de Boston’, ou
‘O Infanticida de Toulouse’, convivem com seus vizinhos nos fi nais de semana, e trabalham duro para ganhar o sustento. Nenhum deles se benefi cia fi nanceiramente dos seus atos criminosos.”
A conversa estava começando a interessar a Savoy.
— Ou seja, pode ser absolutamente qualquer pessoa que veio para Cannes passar o período do Festival...
— …decidido, conscientemente, a semear o terror por uma razão completamente absurda, como por exemplo “lutar contra a ditadura da moda” ou “acabar com a divulgação de fi lmes que estimulam a violência”. A imprensa cria uma expressão horripilante para designá-
lo, e começa a levantar suspeitas. Crimes que nada têm a ver com o assassino começam a ser atribuídos a ele. O pânico está instalado, e só termina se por acaso — eu repito, por acaso — ele é preso. Porque muitas vezes age por um período de tempo, e desaparece por completo. Deixou sua marca na história, eventualmente escreve algum diário que será descoberto depois da sua morte, e isso é tudo.
Savoy já não olha mais o relógio. Seu telefone toca, mas ele resolve não atender: o tema era mais complicado do que imaginava.
— O senhor concorda comigo.