— Sim — diz a autoridade máxima da Scotland Yard, o homem que tinha se transformado em lenda ao resolver cinco casos que todos davam por perdidos.
— Por que acha que estamos diante de um assassino em série?
Morris viu no seu computador o que parecia ser um correio eletrônico, e sorriu. O inspetor à sua frente tinha fi nalmente passado a respeitar o que dizia.
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— Pela completa ausência de motivos nos crimes que comete. A maioria desses criminosos tem o que chamamos de “assinatura”: escolhem apenas um tipo de vítima, que pode ser homossexual, prostituta, mendigo, casais que se ocultam na fl oresta, etc. Outros são chamados de “assassinos assimétricos”: matam porque não conseguem controlar o impulso. Chegam a um certo ponto em que esse impulso é satisfeito e param de matar até que a pressão seja novamente in-controlável. Estamos diante de um desses.
“Há várias coisas a considerar neste caso: o criminoso tem um alto nível de sofi sticação. Escolheu armas diversas — as próprias mãos, veneno, estilete. Não está sendo movido pelos motivos clássicos: sexo, alcoolismo, desordens mentais visíveis. Conhece a anatomia humana — e essa é a sua única assinatura por enquanto. Deve ter planejado os crimes com muita antecedência, porque o veneno não deve ter sido fácil de conseguir, de modo que podemos classifi cá-lo entre aqueles que julgam estar “cumprindo uma missão” que ainda não sabemos qual é. Pelo que pude deduzir da menina, e essa é a única pista que temos até agora, usou um tipo de arte marcial russa, chamada Sambo.
“Eu poderia ir mais longe, e dizer que é parte de sua assinatura aproximar-se da vítima e fi car amigo dela por algum tempo. Mas esta teoria não encaixa com o assassinato que foi cometido em pleno almoço, numa praia de Cannes. Pelo visto, a vítima estava com dois guarda-costas que teriam reagido. E também estava sendo vigiada pela Europol.”
Russo. Savoy pensa em pegar o telefone e pedir que fi zessem uma pesquisa urgente em todos os hotéis da cidade. Homem de aproximadamente 40 anos, bem vestido, cabelos ligeiramente grisalhos, russo.
— O fato de ter usado uma técnica marcial russa não signifi ca que ele é desta nacionalidade — Morris adivinhava seu pensamento, 2 6 9
como bom ex-policial que era. — Da mesma maneira que tampouco podemos deduzir que é índio da América do Sul, porque utilizou o curare.
— E então?
— Então, é esperar pelo próximo crime.
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6:50 PM
Cinderela!
Se as pessoas acreditassem mais nos contos de fadas em vez de escutar apenas seus maridos e pais — que acham tudo impossível
— estariam vivendo a mesma coisa que ela experimenta agora, dentro de uma das inumeráveis limusines que se encaminham, lenta mas inexoravelmente, em direção aos degraus, ao tapete vermelho, à maior passarela da moda no planeta.
A Celebridade está ao seu lado, sempre sorridente, vestindo um belo traje a rigor. Pergunta se está tensa. Claro que não: em sonhos não existem tensões, nervosismo, ansiedade ou medo. Tudo é perfeito, as coisas se passam como no cinema — a heroína sofre, luta, mas consegue realizar tudo que sempre desejou.
— Se Hamid Hussein resolver levar adiante o projeto, e se o fi l-me for o sucesso que ele espera, prepare-se para outros momentos iguais.
Se Hamid Hussein resolver levar adiante o projeto? Mas já não está tudo combinado?
— Assinei um contrato quando fui pegar as roupas no Salão de Presentes.
— Esqueça o que eu disse, não quero estragar seu momento tão especial.
— Por favor, continue.
A Celebridade esperava exatamente aquele tipo de comentário da garota boba. Tem um prazer imenso de fazer o que pede.
— Já participei de inúmeros projetos que começam e não terminam jamais. Faz parte do jogo, mas não se preocupe com isso agora.
— E o contrato?
— Contratos são para advogados discutirem enquanto ganham dinheiro. Por favor, esqueça o que eu disse. Aproveite este momento.
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O “momento” vai se aproximando. Por causa do trânsito lento, as pessoas podem ver quem está dentro dos carros, mesmo com os vidros fumê separando os mortais dos eleitos. A Celebridade acena, algumas mãos batem na janela pedindo para que abra só por um instante, que dê um autógrafo, tire uma fotografi a.
A Celebridade acena, como se não estivesse entendendo o que querem, e convencido de que um sorriso é sufi ciente para inundar o mundo com a sua luz.
Há um verdadeiro clima de histeria do lado de fora. Senhoras com seus pequenos bancos portáteis que devem estar sentadas ali desde a manhã fazendo tricô, homens com barrigas de cerveja que parecem estar morrendo de tédio mas são obrigados a acompanhar suas esposas de meia-idade vestidas como se elas também fossem subir o tapete vermelho, crianças que não estão entendendo absolutamente nada do que acontece mas sabem que se trata de algo importante. Asiáticos, negros, brancos, gente de todas as idades separadas por barreiras de aço da estreita faixa por onde as limusines andam, querendo acreditar que estão apenas a dois metros de distância dos grandes mitos do planeta, quando na verdade essa distância é de centenas de milhares de quilômetros. Porque não é apenas a barreira de aço e o vidro do carro que fazem a diferença, mas a chance, a oportunidade, o talento.
Talento? Sim, ela quer acreditar que o talento também conta, mas sabe que isso é o resultado de um jogo de dados entre os deuses, que escolhem determinadas pessoas, enquanto as outras são colocadas do outro lado do abismo intransponível, com a única missão de aplaudir, adorar, e condenar quando chega o momento em que a corrente muda de rumo.
A Celebridade fi nge conversar com ela — mas, na verdade, não está dizendo nada, apenas a olha e move os lábios, como grande ator que é. Não o faz com desejo nem prazer; Gabriela entende de imedia-to que ele não quer ser antipático com seus fãs do lado de fora, mas 2 7 2
ao mesmo tempo já não tem mais paciência para acenar, distribuir sorrisos e beijos.
— Você deve estar achando que sou uma pessoa arrogante, cínica, com um coração de pedra — fi nalmente diz algo. — Se algum dia chegar aonde pretende, irá entender o que sinto: não há saída. O
sucesso escraviza ao mesmo tempo em que vicia, e no fi nal do dia, com um homem ou uma mulher diferente na cama, terminará se perguntando: valeu a pena? Por que sempre desejei isso?
Faz uma pausa.
— Continue.
— Não sei por que estou lhe contando isso.
— Porque quer me proteger. Porque é um homem de bem. Por favor, continue.
Gabriela podia ser ingênua em muitas coisas, mas era uma mulher, e sabia como arrancar quase tudo o que desejava de um homem. Neste caso, a ferramenta certa é a vaidade.
— Não sei por que sempre desejei isso — a Celebridade tinha caído na armadilha, e agora mostrava seu lado frágil, enquanto os fãs acenavam do lado de fora. — Muitas vezes, quando retorno ao hotel depois de um exaustivo dia de trabalho, entro debaixo do chuveiro e fi co um tempo enorme escutando apenas o som da água caindo em meu corpo. Duas forças opostas estão lutando dentro de mim; a que me diz que devia dar graças aos céus, e a que me diz que devia abandonar tudo enquanto é tempo.
“Nestes momentos, sinto-me a pessoa mais ingrata do mundo.
Tenho meus fãs, e já me falta paciência. Sou convidado para as festas mais cobiçadas do mundo, e tudo que desejo é sair logo e voltar para meu quarto, fi car em silêncio lendo um bom livro. Homens e mulheres de boa vontade me dão prêmios, organizam eventos e fazem tudo para que eu me sinta feliz, e na verdade o que me sinto é exausto, inibido, achando que não mereço tudo isso porque não sou digno do meu sucesso. Entende?”
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Por uma fração de segundo, Gabriela sente compaixão pelo homem que está ao seu lado: imagina quantas festas foi obrigado a participar durante o ano, sempre com alguém pedindo uma foto, um autógrafo, contando uma história absolutamente desinteressante enquanto ele fi nge prestar atenção, propondo algum novo projeto, constrangendo-o com o clássico “você não se lembra de mim?”, pegando seus celulares e pedindo que dê apenas uma palavra com o fi lho, a mulher, a irmã. E ele sempre alegre, sempre atento, sempre bem-disposto e educado, um profi ssional de primeira qualidade.