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A maquiagem!

Sim, tinha esquecido por completo. Agora deve sair por uma porta situada à esquerda, alguém a está esperando lá fora. Desce meca-nicamente os degraus, passa por dois ou três seguranças. Um deles pergunta se está saindo para fumar e se pretende retornar para o fi lme. Ela responde que não, e segue adiante.

Cruza outra série de barreiras de ferro, ninguém lhe pergunta nada — porque está saindo, e não tentando invadir o local. Pode ver as costas da multidão que continua acenando e gritando para as limusines que não param de chegar. Um homem vem em sua direção, pergunta seu nome, e pede que o siga.

— Pode esperar um minuto?

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O homem parece surpreso, mas acena positivamente com a cabe-

ça. Gabriela mantém os olhos cravados em um carrossel antigo, que possivelmente está ali desde o início do século passado, e continua a girar, enquanto as crianças saltam nos brinquedos.

— Podemos ir agora? — Pergunta delicadamente o homem.

— Só mais um minuto.

— Vamos chegar tarde.

Mas Gabriela já não consegue mais controlar o choro, a tensão, o medo, o terror daqueles três minutos que acaba de viver. Soluça compulsivamente — pouco importa a maquiagem, ela será refeita de qualquer maneira. O homem estende o braço para que ela se apóie e não tropece com seus saltos altos; os dois começam a caminhar pela praça que vai dar na Croisette, o ruído da multidão vai fi cando cada vez mais distante, os soluços compulsivos vão fi cando cada vez mais altos. Está chorando todas as lágrimas do dia, da semana, dos anos em que sonhou com aquele momento — e que terminou sem que pudesse se dar conta do que tinha acontecido.

— Desculpa — diz ela para o homem que acompanha.

Ele afaga sua cabeça. Seu sorriso demonstra carinho, compreensão, e piedade.

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7:31 PM

Tinha fi nalmente entendido que é impossível procurar a felicidade a qualquer custo — a vida já lhe dera o máximo, e começava a entender que tinha sido sempre generosa com ele. Agora, e pelo resto dos seus dias, iria se dedicar a desenterrar os tesouros escondidos no seu sofrimento, e aproveitar cada segundo de alegria como se fosse o último.

Tinha vencido as tentações. Estava protegido pelo espírito da menina que entendia perfeitamente sua missão, e que agora começava a abrir seus olhos para as verdadeiras razões de sua viagem a Cannes.

Por alguns instantes naquela pizzaria, enquanto relembrava o que havia escutado nas fi tas, a Tentação acusou-o de ser um desequilibrado mental, capaz de acreditar que tudo era permitido em nome do amor. Mas, graças a Deus, o seu momento mais difícil já fi cara para trás.

É uma pessoa absolutamente normal; seu trabalho exige disciplina, horários, capacidade de negociação, planejamento. Muitos de seus amigos dizem que recentemente anda mais isolado que antes; o que não sabem é que sempre foi assim. O fato de ser obrigado a participar de festas, ir a casamentos e batizados, fi ngir que se divertia jogando golfe aos domingos — tudo aquilo não passa de estratégia em busca de seu objetivo profi ssional. Sempre detestou a vida mun-dana, com as pessoas escondendo por detrás de sorrisos a verdadeira tristeza de suas almas. Não custou muito para aprender que a Superclasse é tão dependente de seu sucesso como um usuário de drogas, e muito mais infeliz do que os que não almejam nada além de uma casa, um jardim, uma criança brincando, um prato de comida na mesa e uma lareira acesa no inverno. Estes têm consciência de seus limites, sabem que a vida é curta, e por que devem ir mais adiante?

A Superclasse tenta vender seus valores. Os seres humanos normais se queixam da injustiça divina, invejam o poder, sofrem ao ver 2 8 1

que os outros estão se divertindo; não percebem que ninguém está se divertindo, todos estão preocupados, inseguros, escondendo o gigantesco complexo de inferioridade por trás de suas jóias, seus carros, suas carteiras recheadas de dinheiro.

Igor é uma pessoa de gostos simples, embora Ewa sempre reclamasse da maneira como se vestia. Mas para que comprar uma camisa acima de um preço razoável, se a etiqueta está escondida atrás do seu pescoço? Qual a vantagem de freqüentar restaurantes da moda, se nada de importante é dito ali? Ewa costumava dizer que não conversava muito nas ocasiões em que seu trabalho obrigava a freqüentar festas e eventos. Igor tentava mudar seu comportamento, e se esfor-

çava para ser simpático — mas tudo aquilo lhe parecia absolutamente desinteressante. Olhava as pessoas à sua volta falando sem parar, comparando preços de ações na bolsa, comentando as maravilhas de seu novo iate, fazendo longas observações sobre pintores expres-sionistas só porque haviam gravado o que o guia turístico dissera durante uma viagem a um museu de Paris, afi rmando que tal escritor é melhor que o outro — porque haviam lido as críticas, já que nunca têm tempo de ler um livro de fi cção.

Todos cultos. Todos ricos. Todos absolutamente encantadores. E

todos se perguntando no fi nal do dia: “Não é o momento de parar?”

E todos respondendo a si mesmos: “Se fi zer isso, minha vida perde o sentido.”

Como se soubessem o que é o sentido da vida.

A Tentação perdeu a batalha. Queria fazê-lo acreditar que estava louco: uma coisa é planejar o sacrifício de certas pessoas, a outra é ter a capacidade e a coragem de executá-los. A Tentação dizia que todos nós sonhamos cometer crimes, mas que só os desequilibrados transformam esta idéia macabra em realidade.

Igor é equilibrado. Bem-sucedido. Se assim desejasse, poderia contratar um assassino profi ssional, o melhor do mundo, para que 2 8 2

executasse sua tarefa e mandasse os recados necessários à Ewa. Ou poderia contratar a melhor agência de relações públicas do mundo; no fi nal de um ano seria assunto não apenas em jornais especializados em economia, mas nas revistas que falam de sucesso, brilho e glamour. Com toda certeza, nesse momento sua ex-mulher pesa-ria as conseqüências de sua decisão equivocada, e ele saberia o momento certo de lhe enviar fl ores e pedir para que voltasse — estava perdoada. Tem seus contatos em todas as camadas sociais, desde os empresários que chegaram ao topo através de muita perseverança e esforço até os criminosos que nunca tiveram uma chance de poder mostrar seu lado positivo.

Se está em Cannes não é porque tem um prazer mórbido em ver o que mostram os olhos de uma pessoa quando ela está diante do Inevitável. Se resolveu colocar-se na linha de tiro, na posição arrisca-da em que se encontra agora, é porque tem certeza de que os passos que está dando durante este dia que parece não terminar nunca se-rão fundamentais para que o novo Igor que existe dentro de si possa nascer das cinzas de sua tragédia.

Sempre foi um homem capaz de tomar decisões difíceis e ir até o fi nal, mesmo que ninguém, nem mesmo Ewa, soubesse o que se passava nos corredores escuros de sua alma. Sofreu em silêncio muitos anos as ameaças de pessoas e grupos, reagiu com discrição quando se julgou forte o bastante para liquidar as pessoas que o ameaçavam.

Precisou exercer um imenso autocontrole para não deixar que sua vida fi casse marcada pelas más experiências por que passou. Nunca levou seus medos e seus terrores para casa: Ewa precisava ter uma vida tranqüila, sem tomar conhecimento dos sobressaltos que todo homem de negócios vive. Escolheu poupá-la, e não foi correspondi-do, nem sequer entendido.

O espírito da menina o tranqüilizara com este pensamento, mas acrescentara uma coisa que não tinha pensado até então: não estava ali para reconquistar a pessoa que o havia abandonado, mas para 2 8 3

entender, fi nalmente, que ela não valia todos aqueles anos de dor, todos aqueles meses de planejamento, toda a sua capacidade de perdoar, ser generoso, ter paciência.