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Mandou uma, duas, três mensagens, e Ewa não reagiu. Seria fací-

limo para ela procurar saber onde estava hospedado. Cinco ou seis telefonemas para os hotéis de luxo não resolveriam a questão, já que havia se registrado com nome e profi ssão diferentes; mas quem procura, acha.

Lera as estatísticas: Cannes tem apenas 70.000 habitantes; esse número é geralmente triplicado durante o período do Festival, mas as pessoas que chegam vão sempre aos mesmos lugares. Onde estava ela? Hospedada no mesmo hotel que ele, freqüentando o mesmo bar

— porque tinha visto os dois na noite anterior. Mesmo assim, Ewa não caminhava pela Croisette à sua procura. Não telefonava para amigos comuns, tentando saber onde estava; pelo menos um tinha todos os dados, já que imaginara que aquela que julgava ser a mulher da sua vida iria contatá-lo ao saber que estava tão perto.

O amigo tinha instruções para dizer como podiam se encontrar

— mas até agora, absolutamente nada.

Tira a roupa, entra no chuveiro. Ewa não merecia tudo aquilo.

Tem quase certeza de que a encontrará esta noite, mas a cada momento isso parece perder a importância. Talvez sua missão seja muito maior do que simplesmente recuperar o amor de uma pessoa que o traiu, que espalha coisas negativas a seu respeito. O espírito da menina de sobrancelhas grossas faz com que se lembre da história contada por um velho afegão, no intervalo de uma batalha.

A população de uma cidade no alto de uma das montanhas desertas de Herat, depois de muitos séculos de desordem e maus governantes, está desesperada. Não pode abolir a monarquia de uma hora para outra, e, ao mesmo tempo, já não agüenta as muitas gerações 2 8 4

de reis arrogantes e egoístas. Reúne a Loya Jirga, como é conhecido o conselho dos sábios do local.

A Loya Jirga decide: elegeriam um rei a cada quatro anos, e este teria o poder completo e absoluto. Poderia aumentar os impostos, exigir obediência total, escolher uma mulher diferente todas as noites para levar ao seu leito, comer e beber até não agüentar mais.

Vestiria as melhores roupas, cavalgaria os melhores animais. Enfi m: qualquer ordem, por mais absurda que fosse, seria obedecida sem que ninguém pudesse questionar sua lógica ou sua justiça.

Entretanto, no fi nal desses quatro anos, seria obrigado a renunciar o trono e abandonar o local, levando apenas a família e a roupa do corpo. Todos sabiam que isso signifi cava a morte em três ou quatro dias no máximo, já que naquele vale não existia nada além de um imenso deserto, congelante no inverno, e insuportavelmente quente no verão.

Os sábios da Loya Jirga imaginam que ninguém se arriscaria a tomar o poder, e poderiam voltar ao sistema antigo de eleições democráticas. A decisão foi promulgada: o trono do governante estava vago, mas as condições para ocupá-lo eram rígidas. Em um primeiro momento, várias pessoas fi caram animadas com a possibilidade. Um velho com câncer aceitou o desafi o, mas morreu da doença durante o mandato, com um sorriso no rosto. Um louco sucedeu-o, mas por causa de suas condições mentais partiu quatro meses depois (havia entendido errado) e desapareceu no deserto. A partir daí, começaram a correr histórias dizendo que o trono estava amaldiçoado, e ninguém mais resolveu arriscar-se. A cidade fi cou sem governante, a confusão começou a instalar-se, os habitantes entenderam que as tradições monárquicas precisam ser esquecidas para sempre, e se prepararam para mudar seus usos e costumes. A Loya Jirga começa a comemorar a sábia decisão de seus membros: não obrigaram o povo a fazer uma escolha, apenas conseguiram eliminar a ambição daqueles que desejavam o poder a qualquer custo.

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Neste momento aparece um jovem, bem casado, e pai de três fi lhos.

— Aceito o cargo — diz ele.

Os sábios tentam explicar os riscos do poder. Dizem que tem fa-mília, que aquilo não passava de uma invenção para desestimular aventureiros e déspotas. Mas o rapaz se mantém fi rme em sua decisão. E como é impossível voltar atrás, a Loya Jirga não tem outro remédio a não ser esperar mais quatro anos antes de levar seus planos adiante.

O rapaz e sua família se tornam excelentes governantes; são justos, distribuem melhor a riqueza, abaixam o preço dos alimentos, dão festas populares para celebrar as mudanças de estação, estimulam o trabalho artesanal e a música. Entretanto, todas as noites uma grande caravana de cavalos deixa o local arrastando pesadas carroças cujo conteúdo está coberto por tecidos de juta, de modo que ninguém pode ver o que há lá dentro.

E jamais retornam.

No início, os sábios da Loya Jirga imaginam que o tesouro está sendo saqueado. Mas ao mesmo se consolam com o fato de que o rapaz nunca se aventurara muito além das muralhas da cidade; se tivesse feito isso e galgado a primeira montanha, iria descobrir que os cavalos morreriam antes de chegar muito longe — estão no meio de um dos lugares mais inóspitos do planeta. Reúnem-se de novo, e dizem: deixemos que ele faça como quer. Assim que terminar seu reino, vamos até o local onde os cavalos caíram de exaustão, os ca-valeiros morreram de sede, e recuperaremos tudo.

Param de preocupar-se e aguardam com paciência.

No fi nal de quatro anos, o rapaz é obrigado a descer do trono e abandonar a cidade. A população revolta-se: afi nal de contas, há muito tempo não tiveram um governante tão sábio e tão justo!

Mas a decisão da Loya Jirga precisa ser respeitada. O rapaz vai até sua mulher e seus fi lhos, e pede que os acompanhe.

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— Farei isso — diz a mulher. — Mas pelo menos deixe nossos fi lhos aqui; eles poderão sobreviver e contar sua história.

— Confi e em mim.

Como as tradições tribais são rígidas, a mulher não tem alternativa se não obedecer ao marido. Montam seus cavalos, vão para a porta da cidade, despedem-se dos amigos que fi zeram enquanto governavam o local. A Loya Jirga está contente: mesmo com todos aqueles aliados, o destino precisa ser cumprido. Ninguém mais se arriscará a subir ao trono, e as tradições democráticas serão fi nalmente restabelecidas.

Assim que puderem, recuperarão o tesouro que a esta altura deve estar abandonado no deserto, a menos de três dias dali.

A família segue para o vale da morte em silêncio. A mulher não ousa conversar nada, as crianças não entendem o que está se passando, e o jovem parece estar imerso em seus pensamentos. Cruzam uma colina, passam o dia inteiro atravessando uma gigantesca planí-

cie, e dormem no alto da colina seguinte.

A mulher desperta ainda de madrugada — quer aproveitar seus dois últimos dias de vida para olhar as montanhas da terra que tanto amou. Vai até o topo, olha para baixo, para o que sabe ser uma outra planície absolutamente deserta. E leva um susto.

Durante quatro anos as caravanas que partiam à noite não levavam jóias nem moedas de ouro.

Levavam tijolos, sementes, madeira, telhas, tecidos, especiarias, animais, objetos tradicionais de perfurar o solo para encontrar água.

Diante dos seus olhos está uma outra cidade — muito mais moderna, mais bela, com tudo funcionando.

— Esse é o seu reino — diz o rapaz que acabou de acordar e juntar-se a ela. — Desde que soube do decreto, sabia que era inú-

til tentar corrigir em quatro anos o que séculos de corrupção e má administração haviam destruído. Mas tinha uma única certeza: era possível começar tudo de novo.

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Está começando tudo de novo, enquanto a água cai em seu rosto.

Entendeu fi nalmente porque a primeira pessoa com quem realmente conversou em Cannes está agora ao seu lado, corrigindo seu curso, ajudando-o a fazer os ajustes necessários, explicando que seu sacrifí-

cio não foi por acaso e nem foi desnecessário. Por um lado, o fi zera entender que Ewa sempre fora uma entidade perversa, apenas interessada em ascensão social, mesmo que isso signifi casse abandonar a família.

“Quando voltar para Moscou, procure fazer esporte. Muito esporte. Isso o ajudará a libertar-se das tensões.”