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Consegue ver seu rosto nas nuvens de vapor provocadas pela água quente. Nunca esteve tão próximo de alguém como está agora de Olivia, a menina de sobrancelhas grossas.

“Siga adiante. Mesmo que já não esteja mais convencido, siga adiante; os desígnios de Deus são misteriosos, e às vezes o caminho só se mostra quando a pessoa começa a andar.”

Obrigado, Olivia. Quem sabe está ali para mostrar ao mundo as aberrações do presente, do qual Cannes era a suprema manifestação?

Não tem certeza. Mas seja o que for, está ali por uma razão, e seus dois anos de tensão, planejamento, medo, incertezas estão fi nalmente sendo justifi cados.

Pode imaginar como será o próximo Festivaclass="underline" pessoas precisando usar cartões magnéticos mesmo nas festas de praia, atiradores de elite em todos os tetos, centenas de policiais à paisana misturando-se com a multidão, detectores de metal em cada porta de hotel, onde grandes fi lhos da Superclasse terão que esperar até que policiais re-vistem suas bolsas, tirem seus sapatos altos, peçam que retornem porque esqueceram algumas moedas no bolso e o dispositivo apitou, ordenem que os senhores de cabelos grisalhos levantem os braços e sejam revistados como um criminoso qualquer, conduzam as mu-2 8 8

lheres a uma única cabine de lona instalada na entrada — destoan-do por completo da antiga elegância local —, onde devem esperar pacientemente em uma fi la para serem revistadas, até que a policial feminina descubra o que fez soar o alarme: os suportes de aço que fi cam na parte inferior dos sutiãs.

A cidade começará a mostrar sua verdadeira face. Luxo e glamour são substituídos por tensão, insultos, olhares indiferentes de policiais, tempo perdido. Isolamento cada vez maior — desta vez provocado pelo sistema, e não pela eterna arrogância dos eleitos.

Custos proibitivos que caem nas costas dos contribuintes, por causa das forças militares deslocadas para um simples balneário com o úni-co objetivo de proteger gente que está tentando se divertir.

Manifestações. Trabalhadores honestos protestando contra aquilo que julgam um absurdo. O governo dá uma declaração dizendo que começa a considerar a possibilidade de transferir os custos para os organizadores do Festival. Os patrocinadores — que podiam arcar com essas despesas — já não estão mais interessados, porque um deles foi humilhado por um agente de quinta categoria, que o mandou calar a boca e respeitar o esquema de segurança.

Cannes começa a morrer. Dois anos mais tarde, dão-se conta de que tudo aquilo que fi zeram para manter a lei e a ordem tinha realmente valido a pena: nenhum crime durante o Festival. Os terroristas não estão mais conseguindo semear o pânico.

Querem voltar atrás, mas é impossível; Cannes continua a morrer. A nova Babilônia é destruída. A Sodoma dos tempos modernos está sendo riscada do mapa.

Sai do banho com uma decisão tomada: quando voltar para a Rússia, irá mandar seus empregados descobrirem o nome da famí-

lia da moça. Fará doações anônimas através de bancos insuspeitos.

Mandará um escritor de talento escrever sua história, e arcará com os custos das traduções no resto do mundo.

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“A história de uma menina que vendia artesanato, era espancada por seu noivo, explorada pelos pais, até que um dia entrega sua alma a um estranho, e com isso muda uma parte do planeta.”

Abre o armário, pega a camisa imaculadamente branca, o smoking bem passado, os sapatos de verniz feitos à mão. Não tem problemas com o nó da gravata-borboleta, fazia isso pelo menos uma vez por semana.

Liga a televisão: é a hora dos jornais locais. O desfi le no tapete vermelho ocupa grande parte do noticiário, mas há uma pequena reportagem sobre uma mulher que foi assassinada em um píer.

A polícia cercou o local, o garoto que presenciou a cena (Igor presta atenção, mas não tem o menor interesse em vingar-se de nada) diz que viu um casal de namorados sentar-se para conversar, o homem tirou o pequeno estilete de metal e começou a passar pelo corpo da vítima, a mulher parecia contente. Por isso não chamou logo a polícia, estava convencido de que era uma brincadeira.

“Como se parecia?”

Branco, aproximadamente 40 anos, com tal e tal roupa, e maneiras delicadas.

Não há por que se preocupar. Abre sua pasta de couro, e retira dois envelopes. Um convite para a festa que está para começar em uma hora (embora, na verdade, todos saibam que terá um mínimo de 90 minutos de atraso), na qual sabe que irá encontrar Ewa: se ela não veio até ele, paciência. Agora é tarde, ele irá ao encontro dela de qualquer maneira. Menos de 24 horas foram sufi cientes para entender com que tipo de mulher se havia casado, e como sofrera inutilmente durante dois anos.

O outro é um envelope prateado, hermeticamente fechado, onde está escrito “Para você” com uma bela caligrafi a, que tanto pode ser feminina ou masculina.

Os corredores são vigiados por câmeras de vídeo — como acontece na maioria dos hotéis hoje em dia. Em algum porão do edifício 2 9 0

há uma sala escura, cercada de monitores, onde um grupo de pessoas atentas nota cada detalhe do que está acontecendo. Suas energias estão voltadas para tudo que saia do normal, como o homem que estava há horas subindo e descendo as escadas do hoteclass="underline" enviaram um agente para saber o que acontecia, e receberam como resposta

“exercício grátis”. Como estava hospedado ali, o agente pediu desculpas e se afastou.

Claro, não se interessam por hóspedes que entram nos quartos de outros e saem apenas no dia seguinte, geralmente depois que o café-

da-manhã é servido. Isso é normal. Isso não lhes diz respeito.

Os monitores estão conectados a sistemas especiais de gravação digital; tudo que se passa nas dependências públicas do hotel é arquivado durante seis meses em um cofre do qual apenas os gerentes possuem a chave. Nenhum hotel do mundo quer perder sua clientela porque algum marido ciumento, com bastante dinheiro, conseguiu subornar uma das pessoas que vigiam o movimento de determinado ângulo do corredor, e colocou (ou vendeu) o material para uma revista de escândalos, depois de apresentar as provas na justiça e evitar que a mulher se benefi cie de parte da sua fortuna.

Se isso algum dia acontecesse, seria um trágico golpe no prestí-

gio do estabelecimento, que preza por sua discrição e confi abilidade. A taxa de ocupação imediatamente sofreria uma queda radical

— afi nal de contas, se um casal escolheu ir para um hotel de luxo é porque sabe que os funcionários jamais vêem nada além daquilo que estão educados para ver. Se alguém pede uma refeição no quarto, por exemplo, o garçom entra com os olhos cravados no carrinho, estende a conta para ser assinada pela pessoa que abriu a porta, e jamais — JAMAIS — olha em direção à cama.

As prostitutas e os prostitutos de luxo se vestem como pessoas discretas — embora os homens que neste momento estão na sala escura cercada de monitores saibam exatamente quem são, usando um sistema de dados fornecido pela polícia. Isso também não lhes 2 9 1

diz respeito, mas mantêm uma atenção especial na porta por onde entraram até que os vejam sair. Em alguns hotéis, a telefonista é encarregada de inventar uma chamada falsa para ver se tudo está bem com o hóspede: ele atende o telefone, uma voz feminina pergunta por uma pessoa inexistente, escuta um insulto do tipo “você errou de quarto”, e o barulho do telefone sendo desligado. Missão cumprida: não há motivos para preocupações.

Os bêbados fi cam surpresos quando caem no chão, experimen-tam a chave de um quarto que não é o deles, vêem que a porta não abre e começam a espancá-la. Neste momento, aparecendo do nada, surge um funcionário solícito do hotel que está passando ali “por acaso” e se propõe a acompanhá-lo ao lugar certo (geralmente, em um andar e em um número diferentes).

Igor sabe que todos os seus passos ali estão registrados no subterrâneo do hoteclass="underline" o dia, a hora, o minuto e o segundo de cada uma de suas entradas no lobby, saídas do elevador, caminhadas até a porta da suíte, e o instante em que usa o cartão magnético que serve de chave. A partir dali, já pode respirar aliviado; ninguém tem acesso ao que está acontecendo lá dentro, já seria violar demais a intimidade alheia.