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Fecha sua porta e sai.

Teve tempo de estudar as câmeras do hotel assim que chegou de viagem na noite anterior. Da mesma maneira que acontece com os carros — por mais espelhos retrovisores que tenham, sempre há um ponto “cego” que impede o motorista de ver algum veículo no instante da ultrapassagem —, as câmeras mostram claramente tudo que acontece no corredor, exceto os quatro apartamentos que fi cam nas esquinas. Evidente que se um dos homens no subterrâneo vir que uma pessoa passa por determinado local e não aparece na tela seguinte, alguma coisa suspeita aconteceu — talvez um desmaio — e logo enviará alguém para verifi car a ocorrência. Se chegar ali e não 2 9 2

vir ninguém, fi ca evidente que foi convidado a entrar, e isso passa a ser um assunto privado entre os hóspedes.

Mas Igor não pretende parar. Caminha pelo corredor com o ar mais natural do mundo, e na altura da curva para o hall dos elevadores desliza o envelope prateado por debaixo da porta do quarto

— possivelmente uma suíte — que se encontra no ângulo.

Tudo não demorou mais do que uma fração de segundo; se al-guém lá embaixo resolveu acompanhar seus movimentos, não percebeu nada. Muito mais tarde, quando requisitar as fi tas para tentar identifi car o culpado pelo ocorrido, terá muita difi culdade em determinar o momento exato da morte. Pode ser que o hóspede não esteja ali, e só abra o envelope quando voltar de algum dos eventos da noite. Pode ser que tenha aberto o envelope logo em seguida, mas o produto que contém não atua imediatamente.

Durante todo esse tempo, várias pessoas terão passado pelo mesmo local, todos serão suspeitos, e se alguém mal vestido — ou dedicado a trabalhos menos ortodoxos como massagens, prostituição, entrega de drogas — tiver a pouca sorte de fazer o mesmo percurso, será imediatamente preso e interrogado. Durante um festival de cinema, as chances de que um indivíduo com tais características apareça no monitor são imensas.

Está consciente de que existe um perigo que não havia considerado: alguém assistiu ao assassinato da mulher na praia. Depois de alguma burocracia, será chamado para assistir às fi tas. Mas está registrado com passaporte falso e nome fi ctício, cuja foto mostra um homem de óculos com bigode (o hotel nem se deu ao trabalho de conferir, e caso o fi zesse, explicaria que raspou o bigode e usa lentes de contato agora).

Supondo que sejam mais rápidos que qualquer polícia do mundo, e já tenham concluído que uma única pessoa resolveu criar alguns inconvenientes para o bom andamento do Festival, fi carão esperando sua volta, e assim que retornar ao quarto será convidado a prestar 2 9 3

declarações. Mas Igor sabe que aquela é a última vez que caminha pelos corredores do Martinez.

Entrarão em seu quarto. Encontrarão uma valise completamente vazia, sem qualquer impressão digital. Irão até o banheiro, e pensarão consigo mesmos: “Veja só, tão rico e resolve lavar suas roupas na pia do hotel! Será que não pode pagar a lavanderia?”

Um policial colocará a mão para pegar o que considera ser “prova onde serão encontrados vestígios de DNA, impressões digitais, fi os de cabelo”. Dará um grito: seus dedos foram queimados pelo ácido sulfúrico que neste momento dissolve todo o material que deixara para trás. Precisa apenas do seu passaporte falso, cartões de crédito, e dinheiro vivo — tudo isso nos bolsos do smoking, junto com a pequena Beretta, arma desprezada pelos entendidos.

Viajar sempre foi fácil para ele: detesta carregar peso. Mesmo tendo uma missão complicada a cumprir em Cannes, escolheu material leve, fácil de transportar. Não consegue compreender como algumas pessoas trazem gigantescas malas, mesmo quando precisam passar apenas um ou dois dias fora de casa.

Não sabe quem abrirá o envelope, e isso não lhe interessa: quem faz a escolha não é ele, mas o Anjo da Morte. Muita coisa pode acontecer nesse meio tempo — inclusive absolutamente nada.

O hóspede pode telefonar para a portaria, dizer que entregaram algo para a pessoa errada, e pedir que venham recolhê-lo. Ou jogá-

lo no lixo, achando que é mais um dos bilhetes gentis da direção do hotel, perguntando se tudo está correndo bem; tem outras coisas para ler, e precisa se preparar para alguma festa. Se for um homem que espera a mulher chegar a qualquer instante, irá colocá-lo no bolso, certo de que a mulher que encontrou durante a tarde e que tentou seduzir de qualquer maneira agora está lhe dando uma resposta positiva. Pode ser um casal; como nenhum dos dois sabe a quem se destina o “para você”, aceitam mutuamente que não cabe 2 9 4

a eles agora começar a levantar suspeitas um sobre o outro, e atiram o envelope pela janela.

Se, entretanto, apesar de todas essas possibilidades, o Anjo da Morte estiver realmente decidido a roçar suas asas no rosto do des-tinatário, então ele (ou ela) vai rasgar a parte superior, e ver o que tem dentro.

Algo que deu muito trabalho para ser colocado ali.

Precisou da ajuda dos seus antigos “amigos e colaboradores”, que antes haviam lhe emprestado uma soma considerável para que pudesse montar sua companhia, e fi caram muito descontentes quando descobriram que ele resolvera pagá-los de volta, pois desejavam cobrá-la apenas quando fosse conveniente para eles — afi nal, estavam muito contentes que um negócio absolutamente legal lhes permitisse integrar de novo no sistema fi nanceiro russo um dinheiro cuja origem era difícil de explicar.

Mesmo assim, depois de um período em que quase não se falavam, voltaram a ter relações. Sempre que pediam qualquer favor

— como arranjar vaga na universidade para a fi lha, ou conseguir ingressos para alguns concertos a que seus “clientes” desejavam assistir — Igor movia o céu e a terra para atendê-los. Afi nal de contas, foram os únicos que acreditaram em seus sonhos, independente dos motivos que tinham para isso. Ewa — e agora, cada vez que pensava nela, sentia uma irritação que era difícil controlar — os acusava de terem usado a inocência do seu marido para lavarem dinheiro de trá-

fi co de armas. Como se isso fi zesse alguma diferença; ele não estava envolvido nem na compra, nem na venda, e em qualquer negócio no mundo ambas as partes precisam lucrar.

E todos têm seus momentos difíceis. Alguns dos seus antigos fi -

nanciadores passaram algum tempo na prisão, e ele jamais os aban-donou — mesmo sabendo que não precisava mais de ajuda. A dignidade de um homem não é medida pelas pessoas que tem em torno 2 9 5

de si quando está no ápice do sucesso, mas pela capacidade de não esquecer as mãos que se estenderam quando mais precisava. Se estas mãos estavam sujas de sangue ou de suor, dá no mesmo: uma pessoa à beira do precipício não pergunta quem o está ajudando a voltar para terra fi rme.

O sentimento de gratidão é importante em um homem: ninguém chega muito longe se esquece aqueles que estavam ao seu lado quando precisava. E ninguém precisa fi car lembrando que ajudou ou foi ajudado: Deus está com os olhos fi xos em seus fi lhos e fi lhas, recom-pensando apenas aqueles que se comportam à altura das bênçãos que lhes foi confi ada.

Assim, quando precisou do curare, soube a quem recorrer — embora tivesse que pagar um preço absurdo por algo relativamente comum nas fl orestas tropicais.

Chega ao salão do hotel. O local da festa está a mais de meia hora de carro, ia ser muito difícil achar um táxi se fi casse parado no meio-fi o. Aprendera que a primeira coisa que se faz quando se chega a um lugar como esse é dar — sem pedir nada em troca — uma generosa gorjeta ao concierge; todos os homens de negócio bem-sucedidos costumavam fazer isso, e sempre conseguiam reservas para os melhores restaurantes, entradas para os espetáculos que gostariam de ver, informações sobre certos pontos na cidade que não estavam em guias turísticos porque escandalizariam as famílias de classe média.