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Com um sorriso, pede e consegue um carro na mesma hora, enquanto ao seu lado um outro hóspede reclama dos problemas de transporte que está sendo obrigado a enfrentar. Gratidão, necessidade e contatos. Qualquer problema pode ser resolvido.

Inclusive a complicada produção do envelope prateado, com o sugestivo “para você” escrito em bela caligrafi a. Tinha deixado para usá-lo no fi nal de sua tarefa, porque se Ewa, por acaso, não tivesse 2 9 6

oportunidade de entender as outras mensagens, essa — a mais sofi sticada de todas — não deixaria margem para dúvidas.

Seus antigos amigos tinham dado um jeito de providenciar o que necessitava. Ofereceram-no de graça, mas ele preferiu pagar; tinha dinheiro, e não gostava de contrair dívidas.

Não fez perguntas desnecessárias; sabia apenas que a pessoa que o havia fechado hermeticamente precisou usar luvas e uma máscara contra gases. Sim, neste caso o preço foi mais justo do que o curare, porque a manipulação é mais delicada — embora o produto não seja muito difícil de conseguir, já que é usado em metalurgia, produção de papel, roupas, plásticos. Tem um nome relativamente assustador: cianureto. Mas seu odor se parece com amêndoas, e sua aparência é inofensiva.

Deixa de pensar em quem fechou, e começa a imaginar quem irá abrir o envelope — perto do rosto, como é normal. Irá encontrar um cartão branco, onde fora impresso em computador uma frase em francês:

“Katyusha je t’aime.”

“Katyusha? Do que se trata isso?”, perguntará a pessoa.

Nota que o cartão está coberto de pó. O contato do ar com o pó transformará o produto em gás. Um cheiro de amêndoas toma conta do ambiente.

A pessoa vai fi car surpresa; podiam ter escolhido algum aroma melhor. Deve ser mais uma dessas propagandas de perfume, refl etirá em seguida. Retira o papel, vira-o de um lado para o outro, e o gás que desprende do pó começa a se espalhar cada vez mais rápido.

“Que tipo de brincadeira é essa?”

Esta será sua última refl exão consciente. Deixa o cartão em cima da mesa de entrada se dirige para o banheiro, pensando em tomar uma ducha, terminar a maquiagem, ajeitar a gravata.

Neste momento, descobre que seu coração está disparado. Não estabelece imediatamente uma relação com o perfume que tomou 2 9 7

conta de seu quarto — afi nal de contas, não tem inimigos, apenas concorrentes e adversários. Antes mesmo de chegar no banheiro nota que não consegue fi car de pé. Senta-se na beira da cama. Uma dor de cabeça insuportável e difi culdade de respirar são os próximos sintomas; logo depois, vem a ânsia de vômito. Mas não terá tempo para isso; perde rapidamente a consciência, antes mesmo de poder relacionar o conteúdo do envelope com o seu estado.

Em poucos minutos — porque a concentração do produto foi expressamente recomendada para ser a mais densa possível — o pul-mão pára de funcionar, o corpo se contrai, as convulsões começam, o coração não bombeia mais o sangue, e a morte chega.

Indolor. Piedosa. Humana.

Igor entra no táxi e dá o endereço: Hotel Du Cap, Eden Roc, Cap d’Antibes.

O grande jantar de gala daquela noite.

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7:40 PM

O andrógino, vestido com uma blusa negra, gravata borboleta branca, e uma espécie de túnica indiana sobre as mesmas calças justas que realçam sua esqualidez, diz que a hora em que estão chegando pode ser algo muito bom ou muito ruim.

— O trânsito está melhor do que eu pensava. Seremos um dos primeiros a entrar no Eden Roc.

Gabriela, que a esta altura já passou por outra sessão de “retoques” no penteado e na pintura do rosto — desta vez com uma maquiadora que parecia absolutamente entediada com o seu trabalho

— não entende o comentário.

— Depois de todos esses engarrafamentos, não é melhor que sejamos precavidos? Como é que isso pode ser ruim?

O andrógino dá um profundo suspiro antes de responder, como se tivesse que explicar o óbvio a alguém que ignora as leis mais ele-mentares do brilho e do glamour.

— Pode ser bom porque você estará sozinha no corredor...

Olha para ela. Vê que não compreende o que está falando, dá outro suspiro, e recomeça:

— Ninguém entra diretamente nesse tipo de festa usando uma porta. Sempre passa por um corredor, onde de um lado estão os fo-tógrafos, e do outro há uma parede com a marca do patrocinador da festa pintada e repetida várias vezes. Nunca viu revistas de celebridades? Não reparou que estão sempre com alguma marca de algum produto atrás enquanto sorriem para as câmeras?

Celebridade. O andrógino arrogante tinha deixado escapar uma palavra inadequada. Admitia, sem querer, que estava acompanhando uma delas. Gabriela saboreou a vitória em silêncio, embora fosse adulta o sufi ciente para saber que ainda havia muito caminho adiante.

— E o que existe de errado em chegar na hora?

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Mais um suspiro.

— Os fotógrafos podem ainda não ter chegado. Mas vamos torcer para que tudo dê certo, assim eu me livro logo destes folhetos com a sua biografi a.

— Minha biografi a?

— Você acha que todo mundo sabe quem é? Não, minha fi lha.

Eu vou ter que ir até lá, entregar este maldito papel a cada um, dizer que daqui a pouco irá entrar a grande estrela do próximo fi lme de Gibson, e que preparem suas câmeras. Farei um sinal para o grupo assim que você aparecer no corredor.

“Não serei muito gentil com eles; estão acostumados a serem sempre tratados como aqueles que estão no degrau mais baixo na escala de poder em Cannes. Direi que estou lhes fazendo um grande favor, e isso é tudo; a partir daí, não vão correr o risco de perder uma oportunidade como essa porque podem ser despedidos, e o que não falta nesse mundo é gente com uma máquina e uma conexão de internet, louca para colocar na rede mundial alguma coisa que todos, absolutamente todos, deixaram passar. Penso que em alguns anos os jornais vão utilizar apenas os serviços de anônimos, e com isso diminuir seus custos — já que a circulação de revistas e jornais está cada vez menor.”

Queria mostrar seu conhecimento sobre a mídia, mas a moça ao seu lado não se interessa; pega um dos papéis, e começa a ler.

— Quem é Lisa Winner?

— Você. Mudamos seu nome. Ou melhor, este nome já estava escolhido mesmo antes de ter sido selecionada. A partir de agora é assim que se chama: Gabriela é italiano demais, e Lisa pode ser de qualquer nacionalidade. Os estúdios de tendências explicam que sobrenomes de quatro a seis letras são sempre mais fáceis de serem guardados pelo grande público: Fanta. Taylor. Burton. Davis. Woods.

Hilton. Quer que eu continue?

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— Já vi que você entende de mercado; agora preciso descobrir quem sou — segundo minha nova biografi a.

Não procurou disfarçar a ironia em sua voz. Estava ganhando terreno; começava a se comportar como uma estrela. Começou a ler o que estava escrito ali: a grande revelação escolhida entre mais de mil participantes para trabalhar na primeira produção cinematográfi ca do famoso costureiro e empresário Hamid Hussein... etc.

— Os folhetos já estavam impressos há mais de um mês — disse o andrógino, fazendo a balança pesar de novo a seu favor, e saboreando sua pequena vitória. — Foi escrito pela equipe de marketing do grupo; eles não erram nunca. Veja certos detalhes como: “Trabalhou como modelo, fez curso de arte dramática.” Confere com você, não é verdade?

— Isso signifi ca que fui selecionada mais pela minha biografi a do que pela qualidade do meu teste.

— Todas as pessoas que estavam ali tinham a mesma biografi a.

— Que tal pararmos de nos provocar, e tentarmos ser mais humanos e mais amigos?