— por tudo isso é melhor passar sempre a responsabilidade para alguém superior.
Seu telefonema não passa de pura encenação: já sabe quem é o criminoso. Irá prendê-lo sozinho, sem que ninguém mais possa evo-car para si os louros da descoberta do maior caso policial na história de Cannes. Precisa manter o sangue-frio, mas está doido que aquela reunião termine logo.
Quando volta, o comissário lhe diz que Stanley Morris, o grande especialista da Scotland Yard, acaba de telefonar de Monte Carlo.
Diz que não se preocupem muito, duvida que o criminoso utilize de novo a mesma arma.
— Podemos estar diante de uma nova ameaça de terror — diz o estrangeiro.
— Sim, estamos — responde o comissário. — Mas, ao contrário de vocês, a última coisa que queremos é semear o medo na população. O que precisamos defi nir aqui é o comunicado de imprensa, para evitar que os jornalistas tirem sua própria conclusão e a divulguem no telejornal da noite.
“Estamos diante de um caso isolado de terror: possivelmente um assassino em série.”
— Mas…
— Não tem “mas”... — a voz do comissário é dura e autoritária.
— A sua embaixada foi contatada porque o morto é do seu país. O
senhor está aqui como convidado. No caso das duas outras pessoas mortas, também americanas, não houve o menor interesse de enviar 3 2 5
um representante, mesmo que em um desses casos também tenha sido utilizado veneno.
“Portanto, se o que está querendo insinuar é que estamos diante de uma ameaça coletiva, na qual armas biológicas estão sendo utilizadas, pode retirar-se. Não vamos transformar um problema criminal em algo político. Queremos ter mais um Festival no ano que vem com todo o brilho e glamour que merece, acreditamos no especialista da Scotland Yard, e vamos traçar um comunicado que siga essas normas.”
O estrangeiro cala-se.
O comissário chama um assistente, pede que vá até o grupo de jornalistas e diga que em dez minutos terão as conclusões que estão aguardando. O legista informa que é possível traçar a origem do cianureto, já que ele deixa uma “assinatura”, mas que isso levará mais do que dez minutos — talvez uma semana.
— Havia traços de álcool no organismo. A pele estava vermelha, a morte foi quase imediata. Não há dúvida quanto ao tipo de veneno utilizado. Se tivesse sido algum ácido, encontraríamos queimaduras em torno do nariz e da boca; no caso de beladona, as pupilas dos olhos estariam dilatadas, se...
— Doutor, sabemos que o senhor fez um curso na universidade, que está habilitado a nos dar a causa da morte, e não temos dúvida de sua competência. Então, concluímos que foi cianureto.
O doutor faz uma afi rmativa com a cabeça e morde os lábios, controlando sua irritação.
— E quanto ao outro homem que está no hospital? O diretor de cinema...
— Neste caso, usamos oxigênio puro, 600 mg de Kelocyanor por via intravenosa a cada 15 minutos, e se não der resultado, podemos acrescentar triosulfato sódico diluído em 25%...
O silêncio na sala é quase palpável.
— Desculpem. A resposta é: será salvo.
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O comissário faz anotações em uma folha de papel amarelo. Sabe que já não tem mais tempo. Agradece a todos, diz ao estrangeiro que não saia com eles, para evitar ainda mais especulações. Vai até o banheiro, ajeita a gravata, e pede que Savoy faça a mesma coisa.
— Morris disse que o assassino não tornará a usar veneno da próxima vez. Pelo que pôde pesquisar desde que você saiu, ele está seguindo um padrão, mesmo que inconsciente. Você pode imaginar qual?
Savoy havia pensado nisso, enquanto voltava de Monte Carlo.
Sim, havia uma assinatura, que talvez nem mesmo o grande inspetor da Scotland Yard tivesse reparado:
Vítima no banco da praça: o criminoso está perto.
Vítima no almoço: o criminoso está longe.
Vítima no píer: o criminoso está perto.
Vítima no hoteclass="underline" o criminoso está longe.
Conseqüentemente, o próximo crime será cometido com a vítima ao lado do assassino. Melhor dizendo: esse devia ser o seu plano, porque será preso na próxima meia hora. Tudo isso, graças aos seus contatos na delegacia, que lhe passaram a informação sem dar muita importância ao caso. E Savoy, por sua vez, respondeu que era irrelevante. Não era, claro — estava agora diante do elo perdido, a pista certa, a única coisa que faltava.
Seu coração está disparado: sonhou com isso a vida inteira e aquela reunião ali parece não terminar nunca.
— Você está me escutando?
— Sim, senhor comissário.
— Pois saiba o seguinte: as pessoas lá fora não estão esperando uma declaração ofi cial, técnica, com respostas precisas às suas questões. Na verdade, eles farão o possível para que respondamos aquilo que desejam ouvir: não se pode cair nessa armadilha. Vieram até aqui não para nos escutar, mas para nos ver — e para que seu público também possa nos ver.
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Olha Savoy com um ar de superioridade, como se fosse a pessoa mais experiente do planeta. Pelo visto, tentar mostrar cultura não era privilégio de Morris ou do legista — todos sempre tinham uma maneira indireta de dizer “eu conheço meu trabalho”.
— Seja visual. Melhor dizendo: o corpo e o rosto irão dizer mais do que as palavras. Mantenha o olhar fi rme, a cabeça erguida, os ombros abaixados e ligeiramente inclinados para trás. Ombros altos denotam tensão, e todos serão capazes de notar que não temos a menor idéia do que está acontecendo.
— Sim, senhor comissário.
Saem até a entrada do Institut de Médecine Légale. As luzes se acendem, os microfones se aproximam, as pessoas começam a se em-purrar. Depois de alguns minutos, a desordem ganha um contorno de organização. O comissário tira o papel do bolso.
— O famoso ator de cinema foi assassinado com cianureto, um veneno mortal que pode ser administrado de várias formas, mas neste caso o processo utilizado foi o gás. O diretor de cinema será salvo; neste caso, ocorreu um acidente, entrar em um quarto fechado onde ainda havia restos do produto no ar. Os seguranças notaram, através dos monitores, que um homem dava uma volta no corredor, entrava em um dos apartamentos, e cinco minutos depois saía correndo e caía no corredor do hotel.
Omitiu que o quarto em questão não era visível pela câmera.
Omissão não é mentira.
— Os seguranças agiram com rapidez, enviando imediatamente um médico. Quando este se aproximou, notou o cheiro de amêndoas, àquela altura já diluído o sufi ciente para não causar dano. A polícia foi chamada, chegou ao local menos de cinco minutos depois, isolou a área, chamou a ambulância, os médicos vieram com máscaras de oxigênio e conseguiram socorrê-lo.
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Savoy começa a fi car realmente impressionado com a desenvol-tura do comissário. Será que em seu posto são obrigados a fazer um curso de relações públicas?
— O veneno veio dentro de um envelope, com uma caligrafi a que ainda não podemos determinar se é de homem ou mulher. Dentro havia um papel.
Omitiu que a tecnologia usada para fechar o envelope era a mais sofi sticada possível; havia uma chance em um milhão de que algum dos jornalistas presentes soubesse disso, embora mais tarde esse tipo de pergunta fosse inevitável. Omitiu que outro homem da indústria havia sido envenenado aquela tarde; pelo visto, todos achavam que o famoso distribuidor tinha morrido de ataque do co-ração, embora ninguém, absolutamente ninguém tivesse mentido a respeito. É bom saber que às vezes a imprensa — por preguiça ou por descaso — termina chegando às suas próprias conclusões sem incomodar a polícia.