tor é conhecido pela capacidade que tem de selecionar bons atores e bons roteiros. O ator principal, que Igor conhece e admira, inspira respeito. Quando ela menciona o nome do produtor, ele faz um sinal com a cabeça, querendo dizer “sim, sei quem é”, mas sabendo que ela irá entender como “não sei quem é, mas não quero passar por ignorante”. Fala sem parar sobre quartos cheios de presentes, o tapete vermelho, o encontro no iate, e a seleção absolutamente rigorosa, os projetos que tem para o futuro.
— Neste momento, existem milhares de moças nesta cidade, e milhões no mundo inteiro, que gostariam de estar aqui conversando com você, e podendo contar estas histórias. Minhas preces foram ouvidas. Meu esforço foi recompensado.
A outra moça parece mais discreta e mais triste — talvez por causa de sua idade e da falta de experiência. Igor estava exatamente atrás dos fotógrafos quando ela passou, viu que gritavam seu nome, que a entrevistavam no fi nal do “corredor”. Mas, pelo visto, as outras pessoas na festa não sabiam de quem se tratava; tão assediada no início, e de repente colocada de lado.
Com toda certeza, foi a moça falante que decidiu aproximar-se, perguntando o que fazia ali. No início sentiu-se incomodado, mas sabia que se não fossem elas, outras pessoas sozinhas iriam fazer a mesma coisa para evitar a impressão de que estavam perdidas, isoladas deste mundo, sem amigos na festa. Por isso, aceitou a conversa
— melhor dizendo, aceitou a companhia, embora sua mente estivesse concentrada em outra coisa. Deu o seu nome (Gunther), explicou que era um industrial alemão especializado em maquinaria pesada (um assunto que não interessa a ninguém), tinha sido convidado por amigos para aquela noite. Iria partir no dia seguinte (o que esperava que fosse verdade, embora os desígnios de Deus sejam misteriosos).
Quando soube que não trabalhava na indústria do cinema, e que não estaria no Festival por muito tempo, a atriz quase se afasta; mas a outra a impediu, dizendo que sempre é bom conhecer pessoas 3 4 1
novas. E ali estavam os três: ele esperando o amigo que não chegava, ela esperando um assistente que tinha desaparecido, e a moça calada não esperando absolutamente nada, apenas um pouco de paz.
Tudo se passou muito rápido. A atriz deve ter notado alguma poeira no casaco do smoking, levou a mão antes que ele pudesse reagir, e fi cou surpresa:
— Você fuma charuto?
Ainda bem: charuto.
— Sim, depois do jantar.
— Se quiser, convido vocês dois para uma festa em um iate esta noite. Mas antes preciso localizar o meu assistente.
A outra moça sugere que não seja tão rápida. Em primeiro lugar, acabara de ser contratada para um fi lme e ainda faltava muito para que pudesse cercar-se de amigos (ou “entourage”, a palavra univer-salmente conhecida para os parasitas que circulam em torno de celebridades). Devia ir sozinha, seguir as normas do protocolo.
A atriz agradece o conselho. Mais um garçom passa, a taça de champagne pela metade é colocada na bandeja, e outra taça cheia é retirada.
— Acho também que deve parar de beber tão rápido — diz Igor/
Gunther, pegando delicadamente a taça de sua mão e jogando o conteúdo pela balaustrada. A atriz faz um gesto de desespero, mas depois se conforma: entende que o homem ao seu lado quer apenas o seu bem.
— Estou muito excitada — confessa. — Preciso acalmar-me um pouco. Será que eu poderia fumar um dos seus charutos?
— Lamento, tenho apenas um. E, além do mais, está provado cientifi camente que a nicotina é estimulante, e não calmante.
Charuto. Sim, a forma era parecida mas, fora isso, os dois objetos nada mais tinham em comum. No bolso superior esquerdo do seu paletó carregava um supressor de ruídos, também chamado de silen-3 4 2
ciador. Uma peça de aproximadamente dez centímetros de compri-mento que, uma vez acoplado ao cano da Beretta guardada no bolso da calça, era capaz de fazer um grande milagre: Transformar “BANG!” em “puff...”
Isso porque algumas simples leis da física entravam em ação quando a arma era disparada: a velocidade da bala diminuía um pouco porque é obrigada a atravessar uma série de anéis de borracha, enquanto os gases do disparo enchem o compartimento oco em torno do cilindro, se resfriam rapidamente, e impedem que o barulho da explosão da pólvora seja ouvido.
Péssimo para tiros a longa distância, porque interfere no curso do projétil. Mas ideal para disparos à queima-roupa.
Igor começa a fi car impaciente; será que o casal havia cancelado o convite? Ou será que — ele sente-se perdido por uma fração de segundo — a suíte onde colocara o envelope era exatamente a mesma em que eles estavam hospedados?
Não, não pode ser; seria muita falta de sorte. Pensa na família daqueles que morreram. Se tivesse ainda como único objetivo reconquistar a mulher que o abandonara por um homem que não a merecia, todo aquele trabalho teria sido inútil.
Começa a perder o sangue-frio; será que essa é a razão pela qual Ewa não tentou entrar em contato com ele, apesar de todas as mensagens que enviara? Ligara duas vezes para o amigo que tinham em comum, e foi informado de que não havia qualquer novidade.
A dúvida começa a ganhar contornos de certeza: sim, o casal estava morto naquele momento. Isso explicava a partida súbita do
“assistente” da atriz ao seu lado. E o abandono completo da menina de 19 anos que tinha sido contratada para aparecer ao lado do grande estilista.
Quem sabe Deus o estava punindo por ter amado tanto uma mulher que não merecia? Foi sua ex-esposa que usou suas mãos para 3 4 3
estrangular uma moça que tinha a vida inteira pela frente, podia descobrir a cura do câncer ou a maneira de fazer com que a humanidade tomasse consciência de que estava destruindo o planeta. Mesmo que Ewa não soubesse de nada, foi ela quem o estimulou a usar os venenos; Igor estava certo, absolutamente certo de que nada daquilo seria necessário, um simples mundo destruído e o recado chegaria ao seu destino. Carregou o pequeno arsenal consigo sabendo que tudo aquilo não passava de um jogo; ao chegar no bar onde fora beber champagne antes de sair para a festa, descobriria sua presença ali, entenderia que havia sido perdoada por toda a maldade e destruição que causara à sua volta. Sabe através de pesquisas científi cas que pessoas que passaram muito tempo juntas são capazes de pressentir a presença do outro em um mesmo ambiente, mesmo que não saibam exatamente onde está.
Isso não aconteceu. A indiferença de Ewa na noite anterior — ou talvez sua culpa pelo que fi zera com ele — não permitira que notasse o homem que fi ngia esconder-se atrás de uma pilastra, mas que tinha em sua mesa revistas de economia escritas em russo, pista sufi ciente para quem está buscando sempre aquele que perdeu. Uma pessoa apaixonada sempre acredita que está vendo na rua, nas festas, nos teatros, o grande amor da sua vida: talvez Ewa tivesse trocado seu amor pelo brilho e pelo glamour.
Começa a acalmar-se. Ewa era o veneno mais poderoso que havia sobre a face da terra, e se fora destruída por cianureto, isso não era nada. Merecia algo muito pior.
As duas moças continuavam conversando; Igor se afasta, não pode deixar-se dominar pelo pânico de ter destruído sua própria obra. Precisa de isolamento, frieza, capacidade de reagir com rapidez à súbita mudança de rumo.
Aproxima-se de outro grupo de pessoas, que conversam animadamente sobre os métodos que estão utilizando para deixar de fumar.
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Sim, esse era um dos poucos assuntos preferidos naquele mundo: mostrar aos amigos que são capazes de ter força de vontade, existe um inimigo a ser vencido, e elas conseguem dominá-lo. Para distrair-se, acende um cigarro, sabendo que isso é uma provocação.
— Faz mal à sua saúde — comenta a mulher coberta de diamantes, corpo esquelético, um copo de suco de laranja na mão.
— Faz mal à saúde estar vivo — responde. — Sempre acaba em morte, cedo ou tarde.