Os homens riem. As mulheres olham o recém-chegado com interesse. Mas neste momento, no corredor que se encontra a duas dezenas de metros de distância, os fotógrafos voltaram a gritar.
— Hamid! Hamid!
Mesmo de longe, e com a visão atrapalhada pelas pessoas que circulam no jardim, pode ver o costureiro entrando com sua companheira — aquela que no passado fi zera o mesmo percurso com ele, em outros lugares do mundo, aquela que segurava seu braço com carinho, delicadeza, elegância.
Antes mesmo que possa respirar aliviado, algo o faz olhar na di-reção oposta: um homem entra pelo outro lado do jardim, sem ser interrompido por nenhum dos seguranças, e começa a mover a ca-beça em todas as direções: estava procurando alguém, e não era um amigo perdido na festa.
Sem se despedir do grupo, volta para a amurada onde as duas moças ainda se encontram conversando, e segura a mão da atriz. Faz uma prece silenciosa à menina de sobrancelhas grossas; pede perdão por haver duvidado, mas os seres humanos ainda são impuros, incapazes de compreender as bênçãos que tão generosamente recebem.
— Não acha que está indo muito rápido? — perguntou a atriz, sem demonstrar nenhuma vontade de mover o braço.
— Acho que sim. Mas pelo que você contou, parece que hoje as coisas se aceleraram muito em sua vida.
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Ela riu. A moça triste também riu. O policial passou sem prestar atenção neles — seus olhos se detinham em homens de aproximadamente 40 anos, alguns cabelos grisalhos.
Mas que estavam sozinhos.
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9:20 PM
Médicos olham exames com resultados totalmente diferentes daquilo que acreditam ser a doença — e a partir daí devem decidir se acreditam na ciência ou no coração. Com o passar do tempo, dão mais atenção aos instintos e vêem que os resultados melhoram.
Grandes homens de negócio que estudam gráfi cos atrás de grá-
fi cos terminam comprando ou vendendo exatamente o oposto da tendência do mercado e fi cam mais ricos.
Artistas escrevem livros ou fi lmes que todo mundo diz “isso não vai dar certo, ninguém toca nestes temas” e terminam se transformando em ícones da cultura popular.
Líderes religiosos utilizam o medo e a culpa em vez do amor, que teoricamente seria a coisa mais importante do mundo; suas igrejas se enchem de fi éis.
Todos contra a tendência geral, exceto um grupo: políticos. Esses querem agradar a todos, e seguem o manual de atitudes corretas.
Acabam tendo que renunciar, desculpar-se, desmentir.
Morris abre uma tela atrás da outra em seu computador. E isso nada tinha a ver com tecnologia, mas com intuição. Já fi zera isso com o índice Dow Jones e, mesmo assim, não estava contente com os resultados. Melhor agora se concentrar um pouco nos personagens que conviveram com ele em grande parte de sua vida.
Olha mais uma vez o vídeo em que Gary Ridgway, o “Assassino de Green River”, conta com uma voz calma como matou 48 mulheres, quase todas prostitutas. Está relatando seus crimes não porque deseja a absolvição dos seus pecados, ou queira aliviar o peso de sua consciência; o promotor ofereceu trocar o risco da condenação à morte pela prisão perpétua. Ou seja, apesar de tanto tempo agindo com impunidade, não deixou provas sufi cientes para comprometê-lo.
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Mas talvez já esteja cansado ou entediado com a tarefa macabra a que se propôs realizar.
Ridgway. Trabalho estável como pintor de carrocerias de caminhão, e que só é capaz de lembrar das vítimas se conseguir relacioná-las com seus dias de trabalho. Durante vinte anos, às vezes com mais de cinqüenta detetives seguindo seus passos, sempre conseguiu cometer mais um crime sem deixar assinaturas ou pistas.
“Era uma pessoa não muito brilhante, deixava muito a desejar no seu trabalho, não tinha grande cultura, mas era um assassino perfeito”, diz um dos detetives na fi ta.
Ou seja, nasceu para isso. Tinha domicílio fi xo. Seu caso chegou a ser arquivado como insolúvel.
Já tinha assistido àquele vídeo centenas de vezes em sua vida. Normalmente, costumava inspirá-lo para resolver outros casos, mas hoje não estava surtindo efeito. Fecha a tela, abre outra, com a carta do pai de Jeffrey Dahmer, “O Açougueiro de Milwaukee”, responsável por matar e esquartejar 17 homens entre os anos de 1978 e 1991:
“Claro que eu não podia acreditar no que a polícia dizia a respeito do meu fi lho. Muitas vezes, sentei-me na mesa que foi usada como lugar de esquartejamento e altar satânico. Quando abria seu refrigerador, via apenas algumas garrafas de leite e latas de soda.
Como é possível que a criança que eu carreguei em meu colo tantas vezes e o monstro que agora tinha seu rosto em todos os jornais pudessem ser a mesma pessoa? Ah, seu estivesse no lugar dos outros pais que em julho de 1991 receberam a notícia que temiam — seus fi lhos não apenas desapareceram, mas foram assassinados. Neste caso, eu poderia visitar o túmulo onde repousavam seus restos, cuidar da sua memória. Mas, não: o meu fi lho estava vivo, e era o autor desses crimes horríveis.”
Altar satânico. Charles Manson e sua “família”. Em 1969, três jovens entram na casa de uma celebridade do cinema e matam todos que estão ali, inclusive um rapaz que estava saindo naquele momen-3 4 8
to. Mais dois assassinatos no dia seguinte — desta vez, um casal de empresários.
“Eu, sozinho, podia assassinar toda a humanidade”, diz.
Vê pela milésima vez a foto do mentor dos crimes sorrindo para a câmera, cercado de amigos hippies, inclusive um famoso músico da época. Todos absolutamente insuspeitos, sempre falando de paz e amor.
Fecha todos os arquivos abertos no seu computador. Manson é o que existe de mais próximo do que está acontecendo agora — cinema, vítimas conhecidas. Uma espécie de manifesto político contra o luxo, o consumismo, a celebridade. Apesar de ser o mentor dos crimes, jamais esteve no lugar onde foram perpetrados; usava seus adeptos para isso.
Não, a pista não está aí. E, apesar dos correios eletrônicos que mandou explicando que não pode ter respostas em tão pouco tempo, Morris começa a sentir que está tendo o mesmo sintoma que todos os detetives, em todos os tempos, tiveram a respeito de assassinos em série:
O caso passa a ser pessoal.
De um lado, um homem que provavelmente tem outra profi ssão, deve ter planejado seus crimes por causa das armas que usa, mas não conhece a capacidade da polícia local, está agindo em um terreno completamente desconhecido. Um homem vulnerável. Do outro lado, a experiência de vários órgãos de segurança acostumados a lidar com todas as aberrações da sociedade.
Mesmo assim, incapaz de interromper a trilha homicida de um simples amador.
Não devia ter atendido à chamada do comissário. Decidira morar no sul da França porque o clima era melhor, as pessoas mais diver-tidas, o mar estava sempre por perto, e esperava que ainda tivesse muitos anos pela frente para poder gozar os prazeres da vida.
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Tinha deixado sua divisão em Londres sendo considerado o melhor de todos. E agora, porque dera um passo errado, sua falha iria chegar até os ouvidos de seus colegas — e já não poderia desfrutar a merecida fama que alcançara com muito trabalho e muita dedicação.
Dirão: “Ele tentou compensar suas defi ciências quando foi a primeira pessoa que insistiu para que computadores modernos fossem instalados em nosso departamento. E apesar de toda a tecnologia ao seu alcance, está velho, incapaz de acompanhar os desafi os de um novo tempo.”
Apertou o botão certo: desligar. A tela apagou-se logo depois de mostrar o logotipo da marca do software que estava usando. Dentro da máquina, os impulsos eletrônicos desapareciam da memória fi xa, e não deixavam nenhum sentimento de culpa, remorso, impotência.
Mas seu corpo não tem botões semelhantes. Os circuitos em seu cérebro continuam funcionando, repetindo sempre as mesmas conclusões, tentando justifi car o injustifi cável, causando danos em sua auto-estima, convencendo-o de que seus colegas têm razão: talvez seu instinto e sua capacidade de análise tenham sido afetados pela idade.