Caminha até a cozinha, liga a máquina de café expresso, que está dando problemas. Anota mentalmente o que pretende fazer: como qualquer eletrodoméstico atual, é mais barato jogá-la fora e comprar uma nova na manhã seguinte.
Por sorte, resolveu desta vez funcionar, e ele bebe sem pressa o café.
Grande parte do seu dia consiste em apertar botões: computador, impressora, telefone, luz, fogão, máquina de café, aparelho de fax.
Mas agora precisa apertar o botão correto em sua mente: não vale a pena reler os documentos enviados pela polícia. Pense diferente.
Faça uma lista, mesmo que ela seja repetitiva:
a) o criminoso tem cultura e sofi sticação sufi cientes — pelo menos no que se refere a armas. E sabe como utilizá-las.
b) não é da região, ou teria escolhido uma época melhor, e um local menos policiado.
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c) não deixa assinatura clara. Ou seja, não quer ser identifi cado.
Embora isso pareça óbvio, as assinaturas nos crimes são uma maneira desesperada de o Médico tentar evitar os males causados pelo Monstro, de Dr. Jekyll dizer a Mr. Hyde: “Por favor, me detenha. Eu sou um mal para a sociedade, e não consigo me controlar.”
d) como foi capaz de aproximar-se de pelo menos duas vítimas, olhar em seus olhos, conhecer um pouco de sua história, está acostumado a matar sem remorso. Portanto, já deve ter participado de alguma guerra.
e) deve ter dinheiro, bastante dinheiro — não porque Cannes seja caríssima durante os dias do Festival; mas pelo custo da produção do envelope de cianureto. Morris estima que deve ter pago em torno de 5 mil dólares — 40 pelo veneno, e 4.460
pela maneira de acondicioná-lo.
f) não faz parte de máfi as de drogas, tráfi co de armas, coisas do tipo, ou já estaria sendo seguido pela Europol. Ao contrário do que a maioria desses criminosos pensa, só permanecem em liberdade porque ainda não chegou a hora certa de serem colocados atrás das grades de uma prisão. Seus grupos estão infi ltrados por agentes que são pagos a peso de ouro.
g) como não deseja ser preso, toma todas as precauções. Mas não pode controlar seu inconsciente, e está — sem querer — obe-decendo a um padrão determinado.
h) é uma pessoa absolutamente normal, incapaz de levantar suspeitas, possivelmente doce e afável, capaz de ganhar confi ança dos que atrai para a morte. Passa algum tempo com suas vítimas, duas delas do sexo feminino, muito mais desconfi ado do que os homens.
i) Não escolhe suas vítimas. Elas podem ser homens, mulheres, qualquer idade, qualquer posição social.
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Morris pára um momento. Algo que escreveu não está combinando direito com o resto.
Relê tudo duas ou três vezes. Na quarta leitura, consegue identifi car:
c) não deixa assinatura clara. Ou seja, não quer ser identifi cado.
Ora, o assassino não está tentando limpar o mundo como Manson, não pretende purifi car sua cidade como Ridgway, não quer satisfazer o apetite dos deuses, como Dahmer. Grande parte dos criminosos não deseja ser preso, mas quer ser identifi cado. Alguns para ganhar a manchete de jornais, a fama, a glória, como Zodíaco ou Jack, o Estripador — talvez achem que seus netos terão orgulho do que fi zeram, quando descobrirem um diário empoeirado no sótão da casa. Outros têm uma missão a cumprir; instalar o terror e afastar as prostitutas, por exemplo. Psicanalistas ouvidos a respeito concluíram que assassinos em série que pararam de matar de uma hora para a outra agiram assim porque o recado que pretendiam enviar tinha sido recebido.
Sim. Essa é a resposta. Como não havia pensado nisso antes?
Por uma simples razão: porque lançaria a busca policial em duas direções opostas. A do assassino e a da pessoa a quem deseja mandar o recado. E no caso de Cannes, ele está matando com muita rapidez: Morris tem quase certeza de que deve desaparecer em breve, assim que a mensagem for entregue.
No máximo em dois, três dias. E, como alguns dos assassinos em série que as vítimas não têm uma característica em comum, a mensagem deve estar sendo destinada a uma pessoa.
Apenas uma pessoa.
Volta ao computador, torna a ligá-lo, e envia uma mensagem tranqüilizadora ao comissário:
“Não se preocupe, os crimes devem cessar abruptamente, antes que o Festival termine.”
Apenas pelo prazer de correr riscos, envia uma cópia para um amigo na Scotland Yard — de modo que saibam que a França o 3 5 2
respeita como profi ssional, pediu sua ajuda, e obteve. Ainda é capaz de chegar a conclusões profi ssionais que mais adiante vão se mostrar acertadas. Não está velho como querem fazer pensar.
Sua reputação está em jogo; mas tem certeza do que acaba de escrever.
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10:19 PM
Hamid desliga o celular — não está nem um pouco interessado no que ocorre no resto do mundo. Na última meia hora seu telefone foi inundado com mensagens negativas.
Tudo isso é um sinal para que termine de uma vez com essa idéia absurda de fazer um fi lme. Deixou-se levar pela vaidade, em vez de escutar os conselhos do sheik e de sua mulher. Pelo visto, está começando a perder contato consigo mesmo: o mundo do luxo e do glamour começa a envenená-lo — logo ele, que sempre se julgou imune a isso!
Basta. Amanhã, quando tudo estiver mais calmo, irá convocar a imprensa mundial ali presente e dizer que, apesar de já ter investido uma quantia razoável na produção do projeto, irá interrompê-lo porque “era um sonho comum de todos os envolvidos, e um deles já não está mais entre nós”. Um jornalista, com certeza, procurará saber se tem outros projetos em mente. Ele responderá que ainda é cedo para falar disso, “precisamos respeitar a memória daquele que partiu”.
É evidente que lamentava, como qualquer ser humano com um mínimo de decência, o fato de que o ator que estava para contratar tinha acabado de morrer envenenado, e que o diretor escolhido para o projeto estava em um hospital — felizmente sem risco de vida. Mas ambas as coisas continham uma mensagem bem clara: nada de cinema. Não é o seu ramo, iria perder dinheiro e nada ganhar em troca.
Cinema para os cineastas, música para os músicos, literatura para os escritores. Desde que embarcara naquela aventura, dois meses atrás, só tinha conseguido aumentar seus problemas: lidar com egos gigantescos, rejeitar orçamentos irreais, corrigir um roteiro que parecia pior a cada vez que lhe entregavam a nova versão, aturar produtores com ar afetado que o tratavam com certa complacência, como se fosse um total ignorante no assunto.
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Sua intenção fora a melhor possíveclass="underline" mostrar a cultura do lugar de onde veio, a beleza do deserto, a sabedoria milenar e os códigos de honra dos beduínos. Tinha esse débito com a sua tribo, embora o sheik tivesse insistido que não devia se desviar do caminho originalmente traçado.
“As pessoas se perdem no deserto porque se deixam levar por miragens. Você está cumprindo bem o seu trabalho, concentre nele todas as suas energias.”
Mas Hamid queria ir mais longe: mostrar que era capaz de surpreender ainda mais, subir mais alto, demonstrar coragem. Pecou por orgulho, e isso não tornaria a acontecer.
Os jornalistas o cobrem de perguntas — pelo visto, a notícia viajara com mais velocidade que nunca. Diz que ainda não conhece os detalhes do caso, mas que irá fazer um pronunciamento no dia seguinte. Repete dezenas de vezes a mesma resposta, até que um de seus seguranças se aproxima e pede que deixem o casal em paz.
Chama um assistente. Pede que encontre Jasmine na multidão que circula pelos jardins, e a traga até ele. Sim, precisam de algumas fotos juntos, um novo press release confi rmando a negociação, uma boa assessoria de imprensa que seja capaz de manter o assunto vivo até outubro, data da Semana de Moda de Paris. Mais adiante, irá convencer pessoalmente a estilista belga; gostou muito do seu trabalho, está certo de que poderá render dinheiro e prestígio para o seu grupo — o que é absolutamente verdade. Mas, no momento, sabe o que ela está pensando: que tentou comprá-la para que liberasse o contrato de sua principal modelo. Aproximar-se agora não apenas aumentaria o preço, como seria deselegante. Tudo tem seu tempo, melhor aguardar o momento certo.