Gabriela está cansada de falar da injustiça dos poderosos. Eles são assim, e ponto fi nal. Escolhem quem desejam, não têm que dar satisfações a ninguém — e por isso ela precisa de um plano. Muitas outras moças com o mesmo sonho (mas sem o mesmo talento, claro) devem estar distribuindo seus currículos e suas fotos; os produtores que vieram ao Festival estão inundados de pastas, DVDs, cartões de visita.
O que pode fazer a diferença?
Precisa pensar. Não terá outra chance como essa, sobretudo porque gastou o resto do dinheiro que tinha para chegar até ali.
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E — terror dos terrores — está fi cando velha. Vinte e cinco anos. Sua última oportunidade.
Bebe o café olhando pela pequena janela, que dá para um beco sem saída. Tudo que consegue ver é uma tabacaria, e uma menina comendo chocolate. Sim, sua última oportunidade. Espera que seja bastante diferente da primeira.
Volta ao passado, aos 11 anos de idade, a primeira peça de teatro na escola em Chicago, onde passara a infância estudando em um dos colégios mais caros da região. Seu desejo de vencer não nascera de uma aclamação unânime por parte do público presente, composto de pais, mães, parentes, e professores.
Muito pelo contrário: representava o Chapeleiro Louco que encontra Alice em seu País das Maravilhas. Passara em um teste com muitos outros meninos e meninas, já que o papel era um dos mais importantes da peça.
A primeira frase que deveria dizer era: “Você precisa cortar o cabelo.”
Neste momento, Alice responderia: “Isso mostra que o senhor não tem educação com os convidados.”
Quando chegou o esperado momento, tantas vezes ensaiado e repetido, estava tão nervosa que errou o texto, dizendo “Você precisa crescer os cabelos.” A menina que representava Alice respondeu com a mesma frase sobre a má-educação, e isso não teria feito nenhuma diferença para a platéia. Gabriela, entretanto, percebeu seu erro.
E perdeu a fala. Sendo o Chapeleiro Louco um personagem necessário para que a cena continuasse, e como as crianças não estão acostumadas a improvisar no palco (embora façam isso na vida real), ninguém sabia o que fazer — até que, depois de longos minutos com os atores olhando uns para os outros, a professora começou a aplaudir, disse que tinha chegado a hora do intervalo e mandou todos saírem de cena.
Gabriela não apenas saiu de cena, mas saiu da escola em prantos.
No dia seguinte, soube que a cena do Chapeleiro Louco tinha sido 4 3
cortada, com os atores seguindo direto para o jogo de cricket com a Rainha. Embora a professora dissesse que isso não tinha a menor importância, já que a história de Alice no País das Maravilhas era mesmo sem pé nem cabeça, na hora do recreio todos os meninos e meninas se reuniram e lhe deram uma surra.
Não era a primeira surra que levava. Aprendera a se defender com a mesma energia com que conseguia atacar as crianças mais fracas
— e isso acontecia pelo menos uma vez por semana. Mas dessa vez, apanhou sem dizer uma palavra e sem derramar uma lágrima. Sua rea-
ção foi tão surpreendente que a briga durou pouquíssimo — afi nal de contas, tudo que seus colegas esperavam é que estivesse sofrendo e gritando, mas como ela parecia não se importar, perderam o interesse.
Porque naquele momento, a cada tapa que recebia, Gabriela pensava:
“Serei uma grande atriz. E todos, absolutamente todos, irão se arrepender do que fi zeram.”
Quem diz que as crianças não são capazes de decidir o que querem da vida?
Os adultos.
E quando crescemos, terminamos acreditando que eles são mais sábios, que têm toda razão do mundo. Muitas crianças passaram pela mesma situação quando representavam o Chapeleiro Louco, a Bela Adormecida, Aladim, ou Alice — e naquele momento, decidiram abandonar para sempre as luzes dos refl etores e os aplausos da platéia. Mas Gabriela, que até seus 11 anos jamais tinha perdido uma só batalha, era a mais inteligente, a mais bonita, a que tirava as melhores notas na classe, entendia intuitivamente: “Se eu não reagir agora, estarei perdida.”
Uma coisa era apanhar de colegas — porque também sabia bater.
Outra coisa era carregar pelo resto dos seus dias uma derrota. Porque todos nós sabemos disso: o que começa com um erro em uma peça de teatro, com a incapacidade de dançar bem como os outros, 4 4
suportar comentários sobre pernas fi nas demais ou cabeça grande demais, coisas que qualquer criança enfrenta, pode ter duas conseqüências radicalmente diversas.
Alguns poucos resolvem se vingar, procurando ser os melhores naquilo que todos achavam que eram incapazes de fazer. “Vocês um dia ainda terão inveja de mim”, pensam.
A maior parte, porém, aceita que tem um limite, e a partir daí tudo fi ca pior. Crescem inseguros, obedientes (embora sempre sonhem com o dia em que serão livres e capazes de fazer tudo que lhes dá vontade), casam para que não digam que eram tão feias assim (embora continuem se achando feias), têm fi lhos para que não digam que são estéreis (embora realmente tenham vontade de ter fi lhos), se vestem bem para que não digam que se vestem mal (embora já saibam que vão dizer de qualquer maneira, independente da roupa que estiverem usando).
O episódio da peça já tinha sido esquecido pela escola na semana seguinte. Mas Gabriela havia decidido que um dia voltaria àquela mesma escola — desta vez como uma atriz mundialmente conhecida, com secretários, guarda-costas, fotógrafos e uma legião de fãs. Repre-sentaria Alice no País das Maravilhas para as crianças abandonadas, seria notícia, e seus velhos amigos de infância poderiam dizer:
“Um dia estivemos no mesmo palco com ela!”
Sua mãe queria que se formasse em engenharia química; assim que terminou o colégio, seus pais a enviaram para o Illinois Institute of Technology. Enquanto estudava os caminhos das proteínas e a estrutura do benzeno durante o dia, convivia com Ibsen, Coward, Shakespeare durante a noite, em um curso de teatro que pagava com o dinheiro enviado por seus pais para a compra de roupas e de livros exigidos pela universidade. Conviveu com os melhores profi ssionais, teve professores excelentes. Recebeu elogios, cartas de recomendação, atuou (sem que seus pais soubessem) como corista em um grupo de rock e dançarina do ventre em um espetáculo sobre Lawrence da Arábia.
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Era sempre bom aceitar todos os papéis: um dia, alguém importante estaria na platéia por acaso. Iria convidá-la para um verdadeiro teste. Seus dias de provação, sua luta por um lugar diante dos refl etores estariam terminados.
Os anos começaram a passar. Gabriela aceitava comerciais de TV, anúncios de pasta de dente, trabalhos de modelo, e uma vez viu-se tentada a responder a um convite de um grupo especializado em contratar acompanhantes de executivos, porque precisava desesperadamente de dinheiro para mandar preparar um material impresso com suas fotos, que pretendia enviar às mais importantes agências de modelos e atrizes dos Estados Unidos. Mas foi salva por Deus — em quem nunca perdera a fé. Naquele mesmo dia lhe ofereceram um papel de fi gurante no videoclipe de uma cantora japonesa, que ia ser rodado sob o viaduto onde passa o trem suspenso que corta a cidade de Chicago. O pagamento foi mais alto do que esperava (pelo visto, os produtores tinham pedido uma fortuna para a equipe estrangeira), e com o dinheiro extra conseguiu produzir o tão sonhado livro de fotos (ou book, como chamavam em todas as línguas do mundo)
— que também custou muito mais caro do que imaginava.