— Não, fi que aqui — diz a mulher.
E agora, o que fazer?
— Está contente com a sua companhia? — pergunta a mulher.
— Acabei de conhecer Gunther.
Gunther. Hamid e Ewa olham para o impassível Igor ao seu lado.
— E o que ele faz?
— Mas vocês são amigos dele!
— Sim. E sabemos o que ele faz. O que não sabemos é o quanto conhece de sua vida.
Gabriela se vira para Igor. Por que ele não a ajuda?
Alguém chega perguntando que tipo de vinho desejam tomar:
— Branco ou tinto?
Acaba de ser salva por um estranho.
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— Tinto para todos — responde Hamid.
— Voltando ao assunto, o que Gunther faz?
Não foi salva.
— Maquinaria pesada, pelo que pude entender. Não temos nenhuma outra relação, e a única coisa em comum entre nós é que ambos estávamos esperando amigos que não chegaram.
Boa resposta, pensa Gabriela. Quem sabe aquela mulher tivesse um caso secreto com o seu recém-parceiro. Ou um caso aberto, que o marido tinha acabado de descobrir naquela noite — e por isso a tensão no ar.
— Seu nome é Igor. Tem uma das maiores operadoras de telefonia celular da Rússia. Isso é muitíssimo mais importante que vender maquinaria pesada.
E se é assim, por que mentiu? Resolve fi car quieta.
— Esperava encontrá-lo aqui, Igor — agora ela se dirige ao homem.
— Vim para buscá-la. Mas mudei de idéia — é a resposta direta.
Gabriela toca na bolsa cheia de papel, e faz um ar de surpresa.
— Meu celular está tocando. Acho que minha companhia acaba de chegar, e preciso ir encontrá-lo. Peço desculpas, mas veio de longe apenas para acompanhar-me, não conhece ninguém aqui, e me sinto responsável por sua presença.
Levanta-se. A etiqueta ensina que não se deve apertar a mão de quem está comendo — embora até o momento nenhum deles tenha sequer tocado nos talheres. Mas os copos de vinho tinto já estão vazios.
E o homem que se chamava Gunther até dois minutos atrás acaba de pedir que tragam uma garrafa inteira para a mesa.
— Espero que tenha recebido os meus recados — diz Igor.
— Recebi três. Talvez a telefonia aqui seja pior do que a que você desenvolveu.
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— Não estou falando de telefone.
— Então não sei do que está falando.
Tem vontade de dizer: “Claro que sei.”
Como Igor deve saber que, durante o primeiro ano de sua rela-
ção com Hamid, esperou um telefonema, uma mensagem, algum amigo em comum dizendo que ele sentia sua falta. Não queria tê-lo por perto, mas sabia que magoá-lo seria a pior coisa que podia fazer — precisava pelo menos acalmar a Fúria, fi ngir que terminariam sendo bons amigos no futuro. Certa tarde, quando bebeu um pouco e resolveu chamá-lo, havia trocado o número de celular. Quando ligou para o escritório, soube que “estava em reunião”. Nos telefonemas seguintes — sempre quando bebia um pouco, e sua coragem aumentava — descobria que Igor “viajou” ou “ia telefonar logo em seguida”. O que nunca acontecia, claro.
E ela começou a ver fantasmas em todos os cantos, sentir que estava sendo vigiada, que em breve teria o mesmo destino do mendigo e das outras pessoas que ele insinuara “ter permitido passar para uma situação melhor”. Enquanto isso, Hamid não lhe perguntava nunca sobre o passado, sempre alegando que é um direito de todos guardar sua vida privada nos subterrâneos da memória. Fazia tudo para que ela se sentisse feliz, dizia que a vida tinha passado a ter sentido a partir do momento em que a encontrara, e lhe dava mostras de que podia sentir-se segura, protegida.
Um dia a Maldade Absoluta tocou a campainha de sua casa em Londres. Hamid estava em casa e o expulsou. Nada aconteceu nos meses que se seguiram.
Pouco a pouco, foi conseguindo enganar a si mesma. Sim, fi zera a escolha certa: a partir do momento em que elegemos um caminho, os outros desaparecem. Era infantil pensar que podia estar casada com um, e ser amiga do outro — aquilo só acontece quando as pessoas são equilibradas, o que não era o caso de seu ex-marido. Melhor acreditar que alguma mão invisível a salvou da Maldade Absoluta.
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É mulher o sufi ciente para fazer com que o homem que passou a ter a seu lado se torne dependente dela, e tenta ajudá-lo em tudo que pode: amante, conselheira, esposa, irmã.
Dedica toda a sua energia para ajudar o novo companheiro. Durante todo esse tempo tivera apenas uma única e verdadeira amiga
— que assim como surgiu, desapareceu. Também era russa, mas ao contrário dela, tinha sido abandonada por seu marido, e estava na Inglaterra sem saber exatamente o que fazer. Conversava com ela quase todos os dias.
“Deixei tudo para trás”, dizia. “E não me arrependo de minha decisão. Teria feito a mesma coisa mesmo que Hamid — contra a minha vontade — não tivesse comprado a linda fazenda na Espanha e a colocado em meu nome. Tomaria a mesma decisão se Igor, meu ex-marido, tivesse me oferecido metade de sua fortuna. Tomaria a mesma decisão porque sei que não preciso mais ter medo. Se um dos homens mais desejados do mundo quer estar ao meu lado, sou melhor do que eu mesma penso.”
Tudo mentira. Não estava tentando convencer a sua única confi dente, mas a si mesma. Era uma farsa. Por detrás da mulher forte, neste momento sentada naquela mesa com dois homens importantes e poderosos, estava uma menina que tinha medo de perder, de fi car sozinha, pobre, sem jamais ter experimentado a sensação de ser mãe.
Estava acostumada com o luxo e o glamour? Não. Procurava estar preparada para perder tudo no dia seguinte, quando descobrissem que era muito pior do que pensava, incapaz de corresponder às ex-pectativas dos outros.
Sabia manipular os homens? Sim. Todos pensavam que era forte, segura de si, dona de seu próprio destino; que podia de uma hora para a outra abandonar qualquer homem, por mais importante e desejado que fosse. E o que era pior: os homens acreditavam. Como Igor. Como Hamid.
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Porque sabia representar. Porque nunca dizia exatamente o que pensava. Porque era a melhor atriz do mundo, sabia esconder melhor que ninguém o seu lado patético.
— O que você quer? — ele pergunta em russo.
— Mais vinho.
Sua voz soava como se não estivesse se importando muito com a resposta: ele já tinha dito o que desejava.
— Antes de você partir, eu lhe disse algo. Acho que se esqueceu.
Havia dito muitas coisas, como “por favor, eu prometo que vou mudar e trabalharei menos”, ou “você é a mulher da minha vida”,
“se você for embora, está me destruindo”, frases que todo mundo escuta, e sabe que são absolutamente vazias de sentido.
— Eu lhe disse: se você for embora, vou destruir o mundo.
Não conseguia se lembrar, mas era possível. Igor sempre foi um péssimo perdedor.
— E o que isso quer dizer? — perguntou em russo.
— Tenham pelo menos a boa educação de falar em inglês — in-terrompeu Hamid.
Igor o encarou.
— Vou falar inglês não por causa da boa educação. Mas porque quero que entenda.
E voltando-se de novo para Ewa:
— Eu disse que ia destruir o mundo para tê-la de volta. Comecei a fazer isso, mas fui salvo por um anjo; você não merece. É uma mulher egoísta, implacável, interessada apenas em conseguir mais fama, mais dinheiro. Recusou tudo de bom que eu tinha para oferecer, porque acha que uma casa no interior da Rússia não condiz com o mundo em que sonha viver — ao qual não pertence, e jamais pertencerá.
“Sacrifi quei a mim e a outros por sua causa, e isso não pode fi car assim. Preciso ir até o fi nal, de modo que possa voltar ao mundo dos 3 7 3
vivos com a sensação do dever cumprido e da missão completa. Neste momento em que conversamos, estou no mundo dos mortos.”
Os olhos daquele homem inspiravam a Maldade Absoluta, pensa Hamid, enquanto assiste àquela conversa absurda, entremeada de longos períodos de silêncio. Ótimo: deixará que as coisas cheguem até o fi m como ele está sugerindo, desde que esse fi m não implique na perda da mulher amada. Melhor ainda: o ex-marido apareceu acompanhado daquela mulher vulgar, e a insulta em sua frente. Deixará que vá um pouco mais longe, e saberá interromper a conversa no momento desejado — quando ele já não puder mais pedir desculpas e disser que está arrependido.