Ewa deve estar enxergando a mesma coisa: um ódio cego contra tudo e contra todos, simplesmente porque determinada pessoa não conseguiu satisfazer a sua vontade. Pergunta o que teria feito se estivesse no lugar do homem que agora parecia lutar pela mulher amada.
Seria capaz de matar por ela.
O garçom aparece e repara que os pratos não tinham sido tocados.
— Há algo de errado com a comida?
Ninguém responde. O garçom entende tudo: a mulher estava com um amante em Cannes, o marido descobriu, e agora estavam se enfrentando. Tinha visto aquela cena muitas vezes, e geralmente terminava em briga ou escândalo.
— Mais uma garrafa de vinho — disse um dos homens.
— Você não merece absolutamente nada — diz o outro, com os olhos fi xos na mulher. — Você me usou como está usando este idiota ao seu lado. Foi o maior erro de minha vida.
O garçom resolve consultar o dono da festa antes de atender ao pedido sobre a outra garrafa, mas o outro homem já havia se levan-tado, dizendo para a mulher:
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— Basta. Vamos sair daqui.
— Sim, vamos sair, mas vamos lá fora — diz o outro. — Quero ver até onde pode ir para defender uma pessoa que não sabe o que signifi ca as palavras “honra” e “dignidade.”
Os machos se enfrentam por causa da fêmea. A mulher pede para que não façam isso, que voltem para a mesa, mas o seu marido parece estar realmente disposto a revidar o insulto. Pensa em avisar os seguranças que é possível acontecer uma briga lá fora, mas o maître diz que o serviço está lento, o que ele está fazendo parado ali? Precisa servir outras mesas.
Tem toda razão: o que acontece lá fora não é problema seu. Se disser que estava escutando a conversa, será repreendido.
Está sendo pago para servir mesas, e não para salvar o mundo.
Os três atravessam o jardim onde tinha sido servido o coquetel, e que está sendo rapidamente transformado; quando os convidados descerem vão encontrar uma pista de dança com luzes especiais, um tablado de material sintético, algumas poucas poltronas, e muitos bares com bebida gratuita espalhados pelos cantos.
Igor caminha na frente sem dizer nada. Ewa o segue em silêncio, e Hamid completa a fi la. A escada até a praia está fechada por uma pequena porta de metal, que é facilmente aberta. Igor pede que passem à sua frente, Ewa recusa. Ele parece não se incomodar e continua adiante, descendo os muitos lances de degraus que levam até o mar bem lá embaixo. Sabe que Hamid não irá demonstrar covardia. Até o momento em que o encontrara na festa, não passava de um costureiro sem escrúpulos, capaz de seduzir uma mulher casada, e manipular a vaidade dos outros. Agora, porém, o admira secretamente. É um verdadeiro homem, capaz de lutar até o fi m por alguém que julga importante, embora Igor saiba que Ewa não merece sequer as mi-galhas do trabalho da atriz que encontrara naquela noite. Não sabe 3 7 5
representar: pode sentir o seu medo, sabe que está suando, pensando quem deve chamar, como pedir socorro.
Chegam na areia, Igor vai até o fi nal da praia e senta-se perto de alguns rochedos. Pede que os dois façam a mesma coisa. Sabe que além de todo o pavor que está sentindo, Ewa também pensa: “Vou amarrotar meu vestido. Vou sujar meus sapatos.” Mas ela senta-se ao seu lado. O homem pede que se afaste um pouco, ele deseja sentar-se ali. Ewa não se move.
Ele não insiste. Agora ali estão os três, como se fossem velhos conhecidos, em busca de um momento de paz para contemplar a lua cheia que nasce, antes que sejam obrigados a subir de novo e escutar o barulho infernal da discoteca lá em cima.
Hamid promete para si mesmo: dez minutos, tempo sufi ciente para que o outro diga tudo que pensa, desafogue sua raiva, e volte para o lugar de onde veio. Se tentar alguma violência, estará perdido: é fi sicamente mais forte, e foi educado pelos beduínos para reagir com velocidade e precisão a qualquer ataque. Não queria um escândalo no jantar, mas que o tal russo não se engane: está preparado para tudo.
Quando subirem de novo irá pedir desculpas ao anfi trião, e explicar que o incidente já foi resolvido: sabe que pode falar abertamente com ele, dizer que o ex-marido de sua mulher aparecera sem avisar, e fora obrigado a retirá-lo da festa antes que causasse algum problema. Por sinal, se o homem não sair no momento em que voltarem lá para cima, chamará um dos seus seguranças para expulsá-lo. Tanto faz que seja rico, que tenha uma das maiores empresas de telefonia celular da Rússia; ele está sendo inconveniente.
— Você me traiu. Não apenas os dois anos que está com este homem, mas todo o tempo de nossas vidas que passamos juntos.
Ewa não responde nada.
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— O que você seria capaz de fazer para continuar com ela?
Hamid cogita se deve responder ou não. Ewa não é uma mercadoria, que pode ser negociada.
— Pergunte de outra maneira.
— Perfeito. Você daria sua vida pela mulher que está ao seu lado?
Maldade pura nos olhos daquele homem. Mesmo que ele tenha conseguido retirar uma faca do restaurante (não prestou atenção a este detalhe, mas deve pensar em todas as possibilidades), conseguirá facilmente desarmá-lo. Não, não seria capaz de dar a vida por ninguém, exceto por Deus ou pelo chefe de sua tribo. Mas precisava dizer algo.
— Seria capaz de lutar por ela. Penso que, em um momento extremo, seria capaz de matar por ela.
Ewa não agüenta mais a pressão; gostaria de dizer tudo o que sabe a respeito do homem ao seu lado direito. Tem certeza de que cometeu o crime, acabou com o sonho de produtor que seu novo companheiro acalentava há tantos anos.
— Vamos subir.
Na verdade quer dizer: “Por favor, vamos sair daqui imediatamente. Você está conversando com um psicopata.”
Igor parece que não a escuta.
— Seria capaz de matar por ela. Portanto, seria capaz de morrer por ela.
— Se eu lutasse e perdesse, acho que sim. Mas não vamos come-
çar uma cena aqui na praia.
— Quero subir — repete Ewa.
Mas Hamid agora está sendo tocado em seu amor-próprio. Não pode sair dali como um covarde. A ancestral dança dos homens e animais para impressionar a fêmea está começando.
— Desde que você partiu, nunca mais pude ser eu mesmo — diz Igor, como se estivesse sozinho naquela praia. — Meus negócios 3 7 7
prosperaram. Consegui manter o sangue-frio durante o dia, enquanto passava as noites em depressão completa. Perdi algo de mim que nunca mais poderei recuperar. Achei que podia, quando vim até Cannes. Mas agora que cheguei aqui, vejo que a parte que morreu em mim não pode e não deve ser ressuscitada. Jamais voltaria para você, mesmo que se arrastasse aos meus pés, implorasse perdão, ameaçasse suicídio.
Ewa respira. Pelo menos não haverá brigas.
— Você não entendeu meus recados. Eu disse que seria capaz de destruir o mundo, e você não viu. E se viu, não acreditou. O que é destruir o mundo?
Coloca a mão no bolso da calça, e tira uma pequena arma. Mas não a está apontando para ninguém; continua com os olhos fi xos no mar, na lua. O sangue começa a correr mais rápido nas veias de Hamid: ou o outro está querendo apenas assustá-los e humilhá-los, ou está diante de um combate mortal. Mas ali naquela festa? Sabendo que poderá ser preso assim que subir de novo as escadas? Não pode ser tão louco assim — ou não teria conseguido tudo o que conseguiu na vida.
Basta de distrações. É um guerreiro treinado para se defender e para atacar. Deve fi car absolutamente imóvel, porque embora o outro não o esteja olhando diretamente, sabe que seus sentidos estão atentos a qualquer gesto.