Tudo que pode mover sem ser percebido são seus olhos; não há ninguém na praia. Lá em cima começam os primeiros acordes da banda, afi nando os instrumentos, preparando-se para a grande alegria da noite. Hamid não está pensando — seus instintos agora estão treinados para agir sem a interferência do cérebro.
Entre ele e o homem está Ewa, hipnotizada pela visão da arma.
Se tentar qualquer coisa, ele irá virar-se para disparar, ela pode ser atingida.
Sim, talvez sua primeira hipótese seja correta. Está apenas querendo assustá-los um pouco. Obrigá-lo a ser covarde, a perder sua 3 7 8
honra. Se realmente estivesse interessado em atirar, não estaria segurando a arma de maneira não displicente. Melhor conversar, relaxá-
lo, enquanto busca uma saída.
— O que é destruir o mundo? — pergunta.
— É destruir uma simples vida. O universo acaba ali. Tudo aquilo que a pessoa viu, experimentou, todas as coisas más e boas que cru-zaram o seu caminho, todos os sonhos, esperanças, derrotas e vitó-
rias, tudo deixa de existir. Quando éramos crianças, aprendíamos na escola um trecho, que só mais tarde iria descobrir que vinha de um religioso protestante. Ele dizia algo como: “Quando este mar diante de nós leva um grão de areia para suas profundezas, a Europa inteira fi ca menor. Claro que não percebemos, porque é apenas um grão de areia. Mas naquele momento, o continente foi diminuído.”
Igor faz uma pausa. Começa a fi car irritado com o barulho lá em cima, as ondas o estavam deixando relaxado e tranqüilo, pronto para saborear este momento com o respeito que merecia. O anjo de sobrancelhas grossas está assistindo a tudo, e está contente com o que vê.
— Aprendíamos isso para entender também que éramos responsáveis pela sociedade perfeita, o comunismo — continua. — Um era irmão do outro. Na verdade, um era vigia, delator do outro.
Voltou a estar calmo, refl exivo.
— Não estou lhe escutando direito.
Assim tem um motivo para se mover.
— Claro que está. Claro que sabe que estou com uma arma na mão, e quer se aproximar para ver se consegue tomá-la de mim. Procura conversar para distrair-me enquanto pensa no que deve fazer.
Por favor, não se mexa. O momento ainda não chegou.
— Igor, vamos deixar isso tudo para lá — diz Ewa em russo.
— Eu te amo. Vamos embora juntos.
— Fale em inglês. Seu companheiro precisa entender tudo.
Sim, ele entenderia. E mais tarde iria agradecê-la por isso.
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— Eu te amo — repete em inglês. — Jamais recebi seus recados, ou teria voltado correndo. Tentei ligar para você várias vezes, e não consegui. Deixei muitas mensagens com a sua secretária que nunca foram retornadas.
— É verdade.
— Desde que recebi suas mensagens hoje, não podia esperar a hora de encontrá-lo. Não tinha idéia de onde estava, mas sabia que ia me buscar. Sei que não quer me perdoar, mas pelo menos me permita que volte a viver ao seu lado. Serei sua empregada, sua faxineira, cuidarei de você e de sua amante, se resolver arranjar uma. Mas tudo que desejo é fi car ao seu lado.
Depois explicaria tudo isso a Hamid. Agora era o momento de dizer qualquer coisa, desde que pudessem sair dali e voltar lá para cima, para o mundo real, onde existiam policiais capazes de impedir que a Maldade Absoluta continuasse a mostrar seu ódio.
— Ótimo. Eu gostaria de acreditar nisso. Melhor dizendo, eu gostaria de acreditar que a amo também, e que a quero ter de volta.
Mas não é verdade. E acho que você está mentindo, como sempre mentiu.
Hamid já não escuta o que nenhum dos dois está dizendo — sua mente está longe dali, junto com os guerreiros antepassados, pedindo inspiração para o golpe certo.
— Você podia ter me dito que nosso casamento não estava andando do jeito que ambos esperávamos. Nós construímos tanta coisa juntos; será que era impossível encontrar uma solução? Sempre existe uma maneira de permitir que a felicidade entre em nossas casas, mas para isso é preciso que ambos se dêem conta dos problemas. Eu escutaria tudo que você teria para me dizer, o casamento ganharia de novo a excitação e a alegria de quando nos encontramos. Mas você não quis fazer isso. Preferiu a saída mais fácil.
— Sempre tive medo de você. E agora, com essa arma em suas mãos, continuo com mais medo ainda.
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Hamid é puxado de volta a terra pelo comentário de Ewa — já não está mais com a alma solta no espaço, pedindo conselho aos guerreiros do deserto, procurando saber como agir.
Ela não podia ter dito isso. Está dando poder ao inimigo; ele agora sabe que é capaz de aterrorizá-la.
— Eu gostaria de ter lhe convidado para jantar um dia, dizer que me sentia solitária apesar de todos os banquetes, as jóias, as viagens, os encontros com reis e presidentes — continua Ewa. — Sabe mais o quê? Você sempre me trazia presentes caros, mas jamais me mandou a coisa mais simples do mundo: fl ores.
Virou uma discussão de casal.
— Vou deixar vocês dois conversando.
Igor não diz nada. Continua com os olhos fi xos no mar, mas lhe aponta a arma, sugerindo que não se mova. É louco; aquela aparente calma é mais perigosa que gritos de raiva ou ameaças de violência.
— Enfi m — continua, como se não tivesse se distraído com os comentários dela nem com o movimento dele —, você escolheu a saída mais fácil. Abandonar-me. Não me deu nenhuma chance, não entendeu que tudo que eu fazia era por você, para você, em sua honra.
“Mesmo assim, apesar de todas as injustiças, de todas as humilha-
ções, eu aceitaria qualquer coisa para tê-la de volta. Até hoje. Até o momento em que lhe mandei os recados, e você fi ngiu que não recebeu. Ou seja, até o sacrifício de pessoas não foi capaz de movê-la, de matar sua sede de poder e de luxo.”
A Celebridade envenenada e o diretor que está entre a vida e a morte: será que Hamid está imaginando o inimaginável? E compreende algo mais grave: o homem ao seu lado acaba de assinar uma sentença de morte com a sua confi ssão. Ou se suicida, ou acaba com a vida dos dois que sabem demais.
Pode estar delirando. Pode estar entendendo errado, mas sabe que o tempo se esgota.
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Olha a arma na mão do homem. Pequeno calibre. Se não acertar em pontos críticos do corpo, não causará muito dano. Não deve ter experiência com isso, ou teria escolhido algo mais poderoso. Ele não sabe o que está fazendo, deve ter comprado a primeira coisa que lhe ofereceram, dizendo que disparava balas e podia matar.
Por outro lado, por que começaram a ensaiar lá em cima? Não entendem que o barulho da música não deixará que se ouça um tiro?
Saberiam a diferença entre um tiro e um dos muitos ruídos artifi ciais que neste momento infestam — o termo é esse mesmo, infestam, empesteiam, poluem — o ambiente?
O homem voltou a fi car quieto, e isso é muito mais perigoso do que se continuasse falando, esvaziando um pouco o coração de sua amargura e de seu ódio. Pesa de novo as possibilidades, precisa agir nos próximos segundos. Atirar-se por cima de Ewa e agarrar a arma enquanto ainda está displicentemente colocada no seu colo, embora o dedo esteja no gatilho. Estender os braços para a frente. Ele irá recuar de susto, e neste momento Ewa sairá da linha de tiro. Ele irá levantar o braço em sua direção, apontando a arma, mas já estará perto o sufi ciente para poder segurar o seu punho. Tudo acontecerá em um segundo.
Agora.
Pode ser que este silêncio signifi que algo positivo; ele perdeu a concentração. Ou pode ser o início do fi m; já disse tudo que tinha para dizer.
Agora.
Na primeira fração de segundo, seu músculo da coxa esquerda tensiona-se ao máximo, empurrando-o com toda rapidez e a violência em direção à Maldade Absoluta; a área do seu corpo diminui à medida que se deita sobre o colo da mulher, com as mãos estendidas para frente. O primeiro segundo continua, e ele vê a arma sendo 3 8 2