improvisados, já que o combustível de muitos carros acabou e não há mais
possibilidade de manter o aquecimento ligado.
No hotel me explicam que, se preciso MESMO viajar, se for um caso de
vida ou morte, posso pegar uma pequena estrada marginal, fazer um contorno que irá acrescentar mais duas horas ao percurso, embora ninguém possa garantir o estado da pista. Mas, por instinto, resolvo seguir em frente: alguma coisa me empurra para a frente, para o asfalto escorregadio, as horas de paciência nos engarrafamentos.
Talvez o nome da cidade: Vitória. Talvez a idéia de que estou demasiado
acostumado ao conforto, e perdi minha capacidade de improvisar em situações de crise. Talvez o entusiasmo das pessoas, que neste momento estão tentando
recuperar uma catedral construída há muitos séculos - e, para chamar a atenção ao esforço que fazem, convidaram alguns escritores para palestras. Ou talvez aquilo que diziam os antigos conquistadores das Américas: “Navegar é preciso, viver não é preciso.”
E navego. Depois de muito tempo e muita tensão chego a Vitória, onde
pessoas mais tensas ainda estão me esperando. Comentam que há mais de 30
anos não acontece este tipo de nevasca, agradecem o esforço, mas a partir de agora é preciso cumprir o programa oficial, e isso inclui uma visita à catedral de Santa Maria.
Uma jovem, com um brilho especial nos olhos, começa a me contar a
história. No princípio era a muralha. Em seguida, amuralha continuou ali, mas uma das paredes foi usada para a construção de uma capela. Dezenas de anos se passaram, a capela se transformou em uma igreja. Mais um século, e a igreja virou uma catedral gótica. A catedral conheceu seus momentos de glória,
começaram alguns problemas de estrutura, foi abandonada por um período,
passou por reformas que deformaram sua estrutura, mas cada geração achava que tinha resolvido o problema, e refaziam os planos originais. Assim, nos séculos que se seguiram, erguiam uma parede aqui, demoliam uma viga acolá,
acrescentavam reforços deste lado, abriam e fechavam os vitrais.
E a catedral resistia a tudo.
Caminho por seu esqueleto, vendo as reformas atuais: desta vez os
arquitetos garantem que encontraram a melhor solução. Há andaimes e reforços de metal por toda parte, grandes teorias sobre os passos futuros, e algumas críticas ao que foi feito no passado.
E de repente, no meio da nave central, eu me dou conta de algo muito
importante: a catedral sou eu, é cada um de nós. Vamos crescendo, mudando de forma, nos deparamos com algumas fraquezas que precisam ser corrigidas, nem sempre escolhemos a melhor solução, mas apesar de tudo continuamos em frente, tentando nos manter eretos, corretos, de modo a honrar não as paredes, nem as portas ou janelas, mas o espaço vazio que está ali dentro, o espaço onde
adoramos e veneramos aquilo que nos é caro e importante.
Sim, somos uma catedral, sem nenhuma dúvida. Mas o que está no espaço
vazio de minha catedral interior?
Esther, o Zahir.
Ela preencheu tudo. Ela é a única razão pela qual estou vivo. Olho em volta, me preparo para a conferência, e entendo por que enfrentei a neve, os
engarrafamentos, o gelo na estrada: para lembrar que todos os dias preciso reconstruir a mim mesmo, e para - pela primeira vez em toda a minha existência -
aceitar que amo um ser humano mais do que a mim mesmo.
Na volta a Paris - já em condições meteorológicas muito melhores -, eu
estou em uma espécie de transe: não penso, apenas presto atenção no tráfego.
Quando chego em casa, peço à empregada para não deixar ninguém entrar, que durma no emprego durante os próximos dias, que faça café da manhã, almoço e jantar. Piso em cima do pequeno aparelho que me permite conectar-me à Internet, destruindo-o por completo. Arranco o telefone da parede. Coloco meu celular em um pacote e envio para meu editor, pedindo que só me devolva quando eu for lá pessoalmente recolhê-lo.
Durante uma semana, caminho às margens do Sena de manhã, e, na volta
das caminhadas, me tranco no meu escritório. Como se estivesse escutando a voz de um anjo, escrevo um livro - melhor dizendo, uma carta, uma longa carta à mulher de meus sonhos, à mulher que amo, e que amarei sempre. Um dia talvez este livro chegue às suas mãos, e mesmo que isso não aconteça, eu agora sou um homem em paz com meu espírito. Já não luto mais contra meu orgulho ferido, já não procuro Esther em todas as esquinas, bares, cinemas, jantares, Marie, notícias de jornal.
Ao contrário, estou satisfeito que ele exista - mostrou-me que sou capaz de um amor que eu mesmo desconhecia, isso me deixa em estado de graça.
Aceito o Zahir, deixarei que ele me leve à santidade ou à loucura.
empo de rasgar, tempo de costurar, título baseado em um verso do Eclesiastes, foi publicado no final de abril. Na segunda semana de maio,
T estava já em primeiro lugar nas listas de mais vendidos.
Os suplementos literários, que nunca foram gentis comigo, desta vez
redobraram o ataque. Recortei algumas das frases principais, e coloquei no caderno onde estavam as críticas dos anos anteriores; basicamente diziam a mesma coisa, mudando apenas o título do livro:
“... mais uma vez, nos tempos tumultuados em que vivemos, o autor nos faz fugir da realidade através de uma história de amor” (como se o homem pudesse viver sem isso)
“... frases curtas, estilo superficial” (como se frases longas significassem estilo profundo)
“... o autor descobriu o segredo do sucesso - marketing” (como se eu tivesse nascido em um país de grande tradição literária, e tivesse fortunas para investir no meu primeiro livro)
“... embora vá vender como sempre vendeu, isso prova que o ser humano
não está pronto para encarar a tragédia que nos cerca” (como se eles soubessem o que significa estar pronto)
Alguns textos, porém, eram diferentes: além das frases acima,
acrescentavam que eu estava me aproveitando do escândalo do ano anterior, para ganhar ainda mais dinheiro. Como sempre acontecia, a crítica negativa divulgou ainda mais o meu trabalho: meus leitores fiéis compraram, e aqueles que já tinham se esquecido do caso tornaram a lembrar-se e também adquiriram seus exemplares, pois desejavam saber a minha versão para o desaparecimento de Esther (como o livro não se tratava disso, mas de um hino ao amor, devem ter ficado decepcionados e dado razão aos críticos). Os direitos foram imediatamente vendidos para todos os países onde meus títulos eram publicados.
Marie, a quem entregara o texto antes de enviá-lo para a editora, revelou ser a mulher que eu esperava que fosse: ao invés de ficar com ciúme, ou dizer que eu não devia expor minha alma daquela maneira, encorajou-me a seguir adiante e ficou contentíssima com o sucesso. Naquele período de sua vida, estava lendo os ensinamentos de um místico praticamente desconhecido, que citava em todas as nossas conversas.
uando as pessoas nos elogiarem, devemos ficar de olho em nosso
comportamento.
- Q - A crítica nunca me elogiou.
- Falo dos leitores: você tem recebido mais cartas que nunca, vai terminar acreditando que é melhor do que pensa, vai deixar-se dominar por um falso sentimento de segurança, que pode ser muito perigoso.
- Mas, na verdade, depois da ida àquela catedral, acho que sou melhor do
que pensava ser, e isso nada tem a ver com as cartas de leitores. Descobri o amor, por mais absurdo que isso pareça.
- Ótimo. O que mais me agrada no livro, é que você não culpa em momento
algum sua ex-mulher. E tampouco se culpa.
- Aprendi a não gastar meu tempo com isso.
- Que bom. O universo se encarrega de corrigir nossos erros.