De repente, duas, três, quatro, 11 semanas se passaram, sei que estou perto do final, sou possuído de um sentimento de vazio, de alguém que terminou
colocando em palavras aquilo que devia ter guardado para si. Mas agora tenho que chegar até a última frase - e chego.
Antigamente, quando lia biografias de escritores, achava que tentavam
enfeitar a profissão ao dizer que “o livro se escreve, o escritor é apenas o datilografo”. Hoje sei que isso é absolutamente verdade, ninguém sabe por que a correnteza os levou a determinada ilha, e não para aquela que sonhava chegar.
Começam as revisões obsessivas, os cortes, e quando já não agüento mais ler as mesmas palavras, envio o manuscrito ao editor, que o revisa mais uma vez, e o publica.
E para minha constante surpresa, outras pessoas estavam em busca daquela
ilha, e a encontram no livro. Uma conta para outra, a cadeia misteriosa se expande, e aquilo que o escritor julgava ser um trabalho solitário transforma-se em uma ponte, em um barco, em um meio em que almas trafegam e se
comunicam. A partir daí, já não sou mais o homem perdido na tempestade: me encontro comigo mesmo através de meus leitores, entendo o que escrevi quando vejo que outros também entendem - nunca antes disso. Em alguns raros
momentos, como aquele que está prestes a acontecer daqui a pouco, consigo olhar algumas destas pessoas nos olhos, compreender que também minha alma não está só.
Na hora marcada, comecei a autografar os livros. Um rápido contacto de
olhos nos olhos, mas a sensação de cumplicidade, alegria, respeito mútuo. Mãos que se apertam, algumas cartas, presentes, comentários. Noventa minutos depois peço dez minutos de descanso, ninguém reclama, meu editor (como já é
tradicional em minhas tardes de autógrafos) manda servir um copo de champagne a todos que estão na fila (já tentei fazer com que esta tradição fosse adotada em outros países, mas sempre alegam que a champagne francesa é cara, e terminam dando água mineral - o que também demonstra respeito para com quem está
esperando).
Volto à mesa. Duas horas depois, ao contrário do que devem estar pensando os que observam o evento, não estou cansado - mas cheio de energia, poderia continuar aquele trabalho pela noite adentro. Entretanto, a loja já fechou as portas, a fila vai terminando, lá dentro permaneceram quarenta pessoas, que se transformam em trinta, vinte, onze, cinco, quatro, três, dois... e, de repente, nossos olhos se tocam.
- Esperei até o final. Queria ser o último, porque tenho um recado.
Não sei o que dizer. Olho para o lado, editores, representantes de venda e livreiros estão conversando entusiasmados, daqui a pouco iremos jantar, beber, dividir um pouco a emoção daquele dia, contar histórias curiosas que
aconteceram enquanto eu estava assinando.
Eu nunca o tinha visto antes, mas sei quem é. Pego o livro de sua mão e
escrevo:
“Para Mikhail, com carinho.”
Não digo nada. Não posso perdê-lo - qualquer palavra, qualquer frase,
qualquer movimento súbito pode fazer com que vá embora e nunca mais retorne.
Em uma fração de segundo, entendo que ele, e apenas ele, me salvará da bênção -
ou da maldição - do Zahir, porque é o único que sabe onde se encontra, e eu finalmente poderei fazer as perguntas que por tanto tempo repito para mim mesmo.
- Eu queria que você soubesse que ela está bem. E, possivelmente, deve ter lido seu livro.
Os editores, representantes de venda, livreiros se aproximam. Me abraçam, dizem que foi uma tarde especial. Vamos agora relaxar, beber, conversar sobre a noite.
- Gostaria de convidar este leitor - digo. - Ele estava no final da fila, ele irá representar todos os leitores que estiveram aqui conosco.
- Não posso. Tenho um outro compromisso. E, virando-se para mim, um
pouco assustado:
- Vim apenas dar um recado.
- Que recado? - pergunta um dos vendedores.
- Ele nunca convida ninguém! - diz meu editor. - Venha, vamos jantar
juntos!
- Agradeço, mas participo de um encontro todas as quintas-feiras.
- A que horas?
- Daqui a duas horas. -E onde?- Em um restaurante armênio.
Meu chofer, que é armênio, pergunta exatamente em qual, e diz que está a
apenas 15 minutos de distância do lugar onde vamos comer. Todos querem me agradar: pensam que, se estou convidando alguém, esta pessoa deve estar alegre e contente com a honra, qualquer outra coisa pode ficar para outro dia.
- Qual é seu nome? - pergunta Marie.
-Mikhail.
- Mikhail - e vejo que Marie entendeu tudo -, você virá conosco pelo menos por uma hora; o restaurante aonde vamos comer é aqui perto. Depois o chofer o levará aonde quiser. Mas, se preferir, cancelamos nossa reserva e vamos todos jantar no restaurante armênio, assim você fica mais à vontade.
Eu não me canso de olhá-lo. Não é especialmente bonito, nem
especialmente feio. Nem alto, nem baixo. Está vestido de negro, simples e elegante - e por elegância entendo a total ausência de marcas ou grifes.
Marie agarra Mikhail pelo braço, e caminha para a saída. O livreiro ainda tem uma pilha de livros de leitores que não puderam vir, e que eu deveria assinar
- mas prometo que passarei no dia seguinte. Minhas pernas estão tremendo, meu coração está disparado, e no entanto tenho que fingir que tudo está bem, que estou contente com o êxito, que estou interessado neste ou naquele comentário.
Cruzamos a avenida dos Champs-Élysées, o sol está se pondo por detrás do Arco do Triunfo, e, sem qualquer explicação, entendo que aquilo é um sinal, um bom sinal.
Desde que eu saiba lidar com a situação.
Por que desejo falar com ele? O pessoal da editora continua conversando
comigo, respondo automaticamente, ninguém percebe que estou longe, sem
entender direito a razão de convidar para a mesma mesa alguém a quem devia odiar. Desejo descobrir onde Esther se encontra? Desejo vingança contra aquele rapaz, tão inseguro, tão perdido, e que mesmo assim conseguiu afastar a pessoa que amo? Desejo provar a mim mesmo que sou melhor, muito melhor que ele?
Desejo suborná-lo, seduzi-lo, para que convença minha mulher a voltar?
Não sei responder a nenhuma destas perguntas, e isso não tem a menor
importância. Até agora a única frase que disse foi: “gostaria que viesse jantar conosco.” Já tinha imaginado muitas vezes a cena: encontrar os dois, agarrá-lo pelo pescoço, dar-lhe um soco, humilhá-lo na frente de Esther; ou levar uma surra, e fazê-la ver que estava lutando, sofrendo por ela. Imaginei cenas de agressão, ou de indiferença fingida, de escândalo público, mas jamais me passou pela cabeça a frase: “gostaria que viesse jantar conosco.”
Nada de perguntas sobre o que farei a seguir, tudo que preciso fazer é vigiar Marie, que caminha alguns passos na minha frente, agarrada ao braço de Mikhail
- como se fosse sua namorada. Ela não pode deixá-lo partir e, ao mesmo tempo, eu me pergunto por que me ajuda desta maneira - sabendo que o encontro com este rapaz pode também significar descobrir o paradeiro de minha mulher.
Chegamos. Mikhail faz questão de sentar-se longe de mim, talvez deseje
evitar conversas paralelas. Alegria, champagne, vodca e caviar - olho o menu, descubro horrorizado que só nas entradas o livreiro está gastando em torno de mil dólares. Conversas gerais, perguntam a Mikhail o que achou da tarde, ele diz que gostou, perguntam do livro, ele diz que gostou muito. Logo é esquecido, e as atenções se viram para mim - se estou contente, se a fila foi organizada como eu queria, se a equipe de segurança funcionou bem. Meu coração continua
disparado, mas consigo manter a aparência, agradecer por tudo, pela perfeição como o evento foi concebido e realizado. Meia hora de conversa, muitas vodcas depois, e noto que Mikhail está relaxado. Não é o centro das atenções, não precisa dizer nada, basta agüentar mais um pouco e pode ir embora. Sei que não mentiu a respeito do restaurante armênio, e agora tenho uma pista. Minha mulher então continua em Paris! Preciso ser amável, tentar ganhar sua confiança, as tensões iniciais desapareceram.