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Liberdade. Liberdade de estar miseravelmente só.

Pego um táxi até o centro de Paris, peço que pare junto ao Arco do Triunfo.

Começo a caminhar pelos Champs-Elysées, em direção ao Hotel Bristol, onde costumava tomar chocolate quente com Esther sempre que um de nós dois

retornava de uma missão no exterior. Para nós era como um ritual de voltar para casa, um mergulho no amor que nos mantinha unidos, embora a vida nos

empurrasse cada vez mais para caminhos diferentes.

Continuo caminhando. As pessoas sorriem, as crianças estão alegres por

estas poucas horas de primavera em pleno inverno, o tráfego flui livremente, tudo parece em ordem - exceto que nenhuma destas pessoas sabe, ou finge não saber, ou simplesmente não se interessa pelo fato de que acabo de perder minha mulher.

Será que não entendem o quanto estou sofrendo? Todos deviam sentir-se tristes, compadecidos, solidários com um homem que tem a alma sangrando de amor;

mas continuam rindo, mergulhados em suas pequenas e miseráveis vidas que

acontecem apenas nos finais de semana.

Que pensamento ridículo: muitas das pessoas com quem cruzei trazem

também a alma em pedaços, e eu não sei por que ou como estão sofrendo.

Entro em um bar para comprar cigarro, a pessoa me responde em inglês.

Passo em uma farmácia para procurar um tipo de bala de menta que adoro, e o empregado fala inglês comigo (em ambas as vezes pedi os produtos em francês).

Antes de chegar ao hotel, sou interrompido por dois rapazes recém-chegados de Toulouse, precisam saber onde se encontra determinada loja, abordaram várias pessoas, ninguém entende o que dizem. O que é isso? Mudaram a língua do

Champs-Elysées nestas 24 horas em que estive detido?

O turismo e o dinheiro são capazes de fazer milagres: mas como não reparei nisso antes? Porque, pelo visto, eu e Esther já não tomamos aquele chocolate há muito tempo, mesmo que ambos tenham viajado e retornado várias vezes durante este período. Sempre existe alguma coisa mais importante. Sempre existe um compromisso inadiável. Sim, meu amor, tomaremos o nosso chocolate da

próxima vez, volte logo, você sabe que hoje eu tenho uma entrevista realmente importante e não posso buscá-la no aeroporto, tome um táxi, o meu celular está ligado, você pode me chamar se tiver alguma coisa urgente, caso contrário nos vemos de noite.

Telefone celular! Tiro-o do bolso, ligo imediatamente, ele toca várias vezes, em cada uma delas meu coração dá um salto, vejo na pequena tela os nomes de pessoas que estão me procurando, e não atendo ninguém. Oxalá aparecesse um

“sem identificação”; só poderia ser ela, já que aquele número de telefone é restrito a pouco mais de vinte pessoas, que juraram jamais passá-lo adiante. Não aparece, todos são números de amigos ou profissionais muito próximos. Devem estar querendo saber o que aconteceu, querem ajudar (ajudar como?), perguntar se estou precisando de alguma coisa.

O telefone continua tocando. Devo atender? Devo encontrar-me com

algumas destas pessoas?

Decido ficar só até entender direito o que está acontecendo.

Chego ao Bristol, que Esther sempre descrevia como um dos poucos hotéis

em Paris onde os clientes são tratados como hóspedes - e não sem-teto em busca de abrigo. Sou cumprimentado como se fosse alguém da casa, escolho uma mesa diante do belo relógio, escuto o piano, olho o jardim lá fora.

Preciso ser prático, estudar as alternativas, a vida segue adiante. Não sou nem o primeiro nem o último homem a ser abandonado por sua mulher - mas

será que isso precisava ter acontecido em um dia de sol, com as pessoas na rua sorrindo, as crianças cantando, a primavera dando seus primeiros sinais, o sol brilhando, os motoristas respeitando as faixas de pedestre?

Pego um guardanapo, vou tirar estas idéias de minha cabeça e colocá-las no papel. Vamos deixar o sentimento de lado, e ver o que devo fazer:

A) considerar a possibilidade de que tenha sido realmente seqüestrada, sua vida está neste momento em perigo, sou seu homem, seu companheiro de todos os momentos, preciso mover céus e terras para encontrá-la.

Resposta a essa possibilidade: ela pegou seu passaporte. A polícia não sabe, mas também pegou alguns objetos de uso pessoal, e uma carteira com imagens de santos protetores, que sempre levava consigo quando viajava para outro país.

Retirou dinheiro do banco.

Conclusão: estava se preparando para partir.

B) considerar a possibilidade de que tenha acreditado em uma promessa,

que terminou se transformando em uma armadilha.

Resposta: muitas vezes tinha se colocado em situações perigosas - fazia

parte de seu trabalho. Mas sempre me prevenia, já que eu era a única pessoa em quem podia confiar totalmente. Dizia-me onde devia estar, com quem entraria em contacto (embora, para não me deixar em perigo, na maior parte das vezes usava o nome de guerra da pessoa), e o que devia fazer em caso de não voltar em determinada hora.

Conclusão: ela não tinha em mente um encontro com suas fontes de

informação.

C) considerar a possibilidade de ter encontrado um outro homem.

Resposta: não há resposta. É, de todas as hipóteses, a única que faz sentido.

E eu não posso aceitar isso, não posso aceitar que vá embora desta maneira, sem ao menos me dizer a razão. Tanto eu como Esther sempre nos orgulhamos de

enfrentar todas as dificuldades da vida em comum. Sofremos, mas nunca

mentimos um ao outro - embora fizesse parte das regras do jogo omitir alguns casos extraconjugais. Sei que ela começou a mudar muito depois que conheceu o tal Mikhail, mas isso justifica a ruptura de um casamento de dez anos?

Mesmo que ela tivesse dormido com ele, se apaixonado, será que não iria

colocar em uma balança todos os nossos momentos juntos, tudo que tínhamos conquistado, antes de partir para uma aventura sem volta? Era livre para viajar quando quisesse, vivia cercada de homens, soldados que não enxergavam uma mulher há muito tempo, eu jamais lhe perguntara nada, ela jamais me dissera coisa nenhuma. Ambos éramos livres e nos orgulhávamos disso.

Mas Esther desaparecera. Deixando traços visíveis apenas para mim, como

se fosse uma mensagem secreta: eu estou indo embora.

Por quê?

Vale mesmo a pena responder a esta pergunta?

Não. Já que na resposta está escondida minha própria incompetência de

manter ao meu lado a mulher que amo. Vale a pena procurá-la para convencê-la a voltar para mim? Implorar, mendigar mais uma chance em nosso casamento?

Isso parece ridículo: é melhor sofrer como já sofri antes, quando outras

pessoas que amei terminaram me deixando. É melhor lamber minhas feridas,

como também já fiz no passado. Vou ficar algum tempo pensando nela, me

transformarei em uma pessoa amarga, irritarei meus amigos porque não tenho outro assunto a não ser a partida de minha mulher. Tentarei justificar tudo que aconteceu, passarei dias e noites revendo cada momento ao seu lado, terminarei por concluir que ela foi dura comigo, logo eu, que sempre procurei ser e fazer o melhor. Arranjarei outras mulheres. Quando caminhar pela rua, a cada instante vou cruzar com uma pessoa que pode ser ela. Sofrer dia e noite, noite e dia. Isso pode demorar semanas, meses, talvez mais de um ano.