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Até que certa manhã acordo, noto que estou pensando em algo diferente, e

compreendo que o pior já passou. O coração está machucado, mas se recupera e consegue de novo enxergar a beleza da vida. Isso já aconteceu antes, isso tornará a acontecer, tenho certeza. Alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar - encontrarei de novo o amor.

Por um momento, saboreio a idéia de minha nova condição: solteiro e

milionário. Posso sair com quem desejar, em plena luz do dia. Posso me

comportar nas festas como não me comportei durante todos estes anos. A

informação vai correr rápido, e em breve muitas mulheres, jovens ou não tão jovens assim, ricas ou não tão ricas como pretendem ser, inteligentes ou talvez apenas educadas para dizer o que acham que eu gostaria de ouvir, estarão

batendo à minha porta.

Quero acreditar que é ótimo estar livre. Livre de novo. Pronto para

encontrar o verdadeiro amor de minha vida, aquela que está me esperando, e que jamais me deixará viver de novo esta situação humilhante.

* * *

Termino o chocolate, olho o relógio, sei que ainda é cedo para ter esta

agradável sensação de que faço de novo parte da humanidade. Por alguns

momentos sonho com a idéia de que Esther vai entrar por aquela porta, caminhar pelos belos tapetes persas, sentar-se ao meu lado sem dizer nada, fumar um cigarro, olhar o jardim interno e segurar minha mão. Meia hora se passa, meia hora eu fico acreditando na história que acabo de criar, até perceber que se trata apenas de mais um delírio.

Resolvo não voltar para casa. Vou à recepção, peço um quarto, uma escova

de dente, um desodorante. O hotel está cheio, mas o gerente dá um jeito: termino em uma linda suíte com vista para a Torre Eiffel, um terraço, os telhados de Paris, as luzes se acendendo pouco a pouco, as famílias se encontrando para jantar neste domingo. E retorna a mesma sensação que tive nos Champs-Élysées: quanto mais belo tudo a minha volta, mais miserável eu me sinto.

Nada de televisão. Nada de jantar. Sento-me no terraço e faço uma

retrospectiva de minha vida, um jovem que sonhava ser um famoso escritor, e de repente vê que a realidade é completamente diferente - escreve em uma língua que quase ninguém lê, em um país que diziam não haver leitores. Sua família o força a entrar para uma universidade (qualquer uma serve, meu filho, desde que você consiga um diploma - porque caso contrário jamais poderá ser alguém na vida). Ele se rebela, corre o mundo durante a época hippie, termina encontrando um cantor, faz algumas letras de música e de repente consegue ganhar mais dinheiro que sua irmã, que escutara o que os pais haviam dito e decidira tornar-se engenheira química.

Escrevo mais músicas, o cantor faz cada vez mais sucesso, compro alguns

apartamentos, brigo com o cantor, mas tenho capital suficiente para passar os próximos anos sem trabalhar. Caso a primeira vez com uma mulher mais velha que eu, aprendo muito - como fazer amor, como dirigir, como falar inglês, como dormir tarde -, mas terminamos nos separando, porque sou aquilo que ela

considera “emocionalmente imaturo, vive atrás de qualquer mocinha com os

peitos grandes”. Caso a segunda e a terceira vez, com pessoas que, acredito, me darão estabilidade emocionaclass="underline" consigo o que desejo, mas descubro que a sonhada estabilidade vem acompanhada de um profundo tédio.

Mais dois divórcios. De novo a liberdade, mas é apenas uma sensação;

liberdade não é a ausência de compromissos, mas a capacidade de escolher - e me comprometer - com o que é melhor para mim.

Continuo a busca amorosa, continuo escrevendo músicas. Quando me

perguntam o que faço, respondo que sou escritor. Quando dizem que conhecem apenas minhas letras de música, digo que é apenas uma parte do meu trabalho.

Quando se desculpam, e dizem que não leram nenhum livro meu, explico que

estou trabalhando em um projeto - o que é uma mentira. Na verdade, tenho

dinheiro, tenho contactos, o que não tenho é coragem de escrever um livro - o meu sonho passou a ser possível. Se eu tentar e falhar, não sei como será o resto de minha vida: por isso, melhor viver pensando em um sonho, do que enfrentar a possibilidade de vê-lo dar errado.

Um dia, uma jornalista vem me entrevistar: quer saber o que significa ter seu trabalho conhecido no país inteiro, sem que ninguém saiba quem sou, já que normalmente só o cantor aparece nos meios de comunicação. Bonita, inteligente, calada. Tornamos a nos encontrar em uma festa, já não existe a pressão do trabalho, eu consigo levá-la para a cama naquela mesma noite. Eu me apaixono, ela acha que foi uma droga. Telefono, sempre diz que está ocupada. Quanto mais me rejeita, mais interessado fico - até que consigo convencê-la a passar um final de semana em minha casa de campo (embora fosse a ovelha negra, ser rebelde muitas vezes compensa - era o único de meus amigos que àquela altura da vida já conseguira comprar uma casa de campo).

Durante três dias ficamos isolados, contemplando o mar, eu cozinho para

ela, ela conta histórias de seu trabalho, e termina por se apaixonar por mim.

Voltamos para a cidade, começa a dormir regularmente em meu apartamento.

Certa manhã sai mais cedo, e volta com sua máquina de escrever: a partir daí, sem que nada seja dito, minha casa vai se transformando em sua casa.

Começam os mesmos conflitos que tive com minhas mulheres anteriores:

elas sempre em busca de estabilidade, de fidelidade, eu em busca de aventura e do desconhecido. Desta vez, porém, o relacionamento dura mais; mesmo assim, dois anos depois, penso que é o momento de Esther levar de volta para sua casa a máquina de escrever, e tudo que veio com ela.

cho que não vai dar certo.

- Mas você me ama, e eu te amo, não é verdade?

- A - Não sei. Se você perguntar se gosto de sua companhia, a

resposta é sim. Se entretanto quer saber se consigo viver sem você, a resposta também é sim.

- Eu não queria ter nascido homem, estou muito contente com minha

condição de mulher. Afinal, tudo que vocês esperam da gente é que cozinhemos bem. Por outro lado, dos homens se espera tudo, absolutamente tudo: serem capazes de sustentar a casa, fazer amor, defender a prole, arranjar a comida, ter sucesso.

- Não se trata disso: estou muito satisfeito comigo mesmo. Gosto de sua

companhia, mas estou convencido de que não vai dar certo.

- Gosta de minha companhia, mas detesta estar apenas com você mesmo.

Busca sempre a aventura, para esquecer coisas importantes. Vive atrás de

adrenalina em suas veias, e esquece que ali deve correr sangue, e nada mais.

- Não estou fugindo de coisas importantes. O que seria importante, por

exemplo?

- Escrever um livro.

- Isso eu posso fazer a qualquer momento.

-Então faça. Depois, se quiser, nos separamos.

u acho seu comentário absurdo, posso escrever um livro quando

desejar, conheço editores, jornalistas, gente que me deve favores. Esther E é apenas uma mulher com medo de me perder, está inventando coisas.

Digo que basta, nosso relacionamento chegou ao final, não se trata de o que ela acha que me deixaria feliz, se trata de amor.

O que é o amor? Ela pergunta. Fico mais de meia hora explicando, e

termino me dando conta de que não consigo defini-lo bem.

Ela diz que, enquanto não sei definir o amor, que trate de tentar escrever um livro.

Respondo que as duas coisas não têm a menor relação entre si, vou sair de casa naquele mesmo dia, ela fica o tempo que quiser no apartamento - irei para um hotel até que tenha arranjado um lugar onde morar. Ela diz que de sua parte não tem nenhum problema, posso sair agora, antes de um mês o apartamento