“Disse que o meu passado iria me acompanhar sempre, mas que quanto
mais eu me livrasse dos fatos, e me concentrasse apenas nas emoções, eu
entenderia que no presente há sempre um espaço tão grande quanto a estepe para preenchê-lo com mais amor, e mais alegria de viver.
“Finalmente, explicou-me que o sofrimento nasce quando esperamos que os
outros nos amem da maneira que imaginamos, e não da maneira com que o amor deve se manifestar -livre, sem controle, nos guiando com sua força, nos
impedindo de parar.”
Eu retirei a cabeça do seu ombro e olhei-a.
- E você o ama?
-Amei.
- Continua amando?
- Você acha que seria possível? Você acha que, se amasse outro homem, ao
saber que você iria chegar, eu ainda estaria aqui?
- Acho que não. Acho que passou a manhã aguardando o momento da porta
se abrir.
- Então por que me faz perguntas tolas?
Por insegurança, pensei. Mas foi ótimo que tivesse tentado encontrar de
novo o amor.
- Estou grávida.
Foi como se o mundo desabasse sobre minha cabeça, mas durou apenas um
segundo.
-Dos?
- Não. Alguém que veio e foi embora.
Eu ri, embora estivesse com o coração apertado.
- Afinal de contas, não se tem muito para fazer neste fim de mundo -
comentei.
- Não é o fim do mundo - Esther respondeu, rindo também.
- Mas talvez seja hora de voltar para Paris. Me telefonaram do seu trabalho, perguntando se sabia onde podiam encontrá-la. Queriam que fizesse uma
reportagem acompanhando uma patrulha da OTAN no Afeganistão. Você precisa responder que não pode.
- Por que não posso?
- Você está grávida! Deseja que o bebê comece a receber desde cedo as
energias negativas de uma guerra?
- O bebê? Você acha que isso vai me impedir de trabalhar? E além disso,
por que está preocupado? Você não fez nada para isso!
- Não fiz? Não foi graças a mim que veio parar aqui? Ou acha que isso é
pouco?
Ela retirou do bolso de seu vestido branco um pedaço de tecido manchado
de sangue e me entregou, com os olhos cheios d’água.
- E para você. Estava com saudades de nossas brigas. E depois de uma
pausa:
- Peça a Mikhail que consiga mais um cavalo.
Eu me levantei, segurei-a nos ombros e a abençoei, da mesma maneira
como tinha sido abençoado.
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NOTA DO AUTOR
Escrevi O Zahir enquanto fazia minha própria peregrinação por este mundo, entre janeiro e junho de 2004. Partes do livro foram escritas em Paris, St. Martin (França), Madri, Barcelona (Espanha), Amsterdã (Holanda), uma estrada
(Bélgica), Almaty e na estepe (Casaquistão).
Quero agradecer a meus editores franceses, Anne e Alain Carrièrre, que se encarregaram de conseguir todas as informações a respeito de leis francesas citadas no decorrer do livro.
Li pela primeira vez a menção ao Banco de Favores em A fogueira das
vaidades, de Tom Wolfe. O livro que Esther leu, e que conta a história de Fritz e Hans em Tóquio, é Ishmael, de Daniel Quinn. O místico que Marie cita, ao se referir à importância de nos mantermos vigilantes, é Kenan Rifai. A maioria dos diálogos da tribo em Paris me foram relatados por jovens que participam de grupos semelhantes. Alguns deles colocaram seus textos na Internet, mas é impossível distinguir a autoria.
Os versos que o personagem principal aprendeu em sua infância, e relembra quando está no hospital ( Quando a indesejada das gentes chegar...), fazem parte do poema “Consoada”, do brasileiro Manuel Bandeira. Alguns dos comentários de Marie, logo após a cena onde o personagem principal vai à estação de trem receber o ator, nasceram de uma conversa com Agneta Sjodin, atriz sueca. O
conceito de esquecer a história pessoal,embora faça parte de muitas tradições iniciáticas, está bem desenvolvido no livro Viagem a Ixtlan, de Carlos Castaneda.
A Lei de Jante foi desenvolvida pelo escritor dinamarquês Aksel Sandemose na novela Um refugiado ultrapassa seus limites.
Duas pessoas que me honram muito com sua amizade, Dmitry
Voskoboynikov e Evgenia Dotsuk, me facilitaram todos os passos necessários para visitar o Casaquistão.
Em Almaty, pude encontrar Imangali Tasmagambetov, autor do livro The
Centaurs ofthe Great Steppe e grande conhecedor da cultura local, que me deu uma série de informações importantes sobre a situação política e cultural do Casaquistão, no passado e na atualidade. Agradeço também ao presidente da República, Nursultan Nazarbaev, pela excelente acolhida, e aproveito para cumprimentá-lo por não ter dado continuidade aos testes nucleares em seu país, embora tivesse toda a tecnologia necessária para isso, optando por eliminar todo o seu arsenal atômico.
Finalmente, devo muito da minha mágica experiência na estepe a três
pessoas que me acompanharam e que tiveram muita paciência: Kaisar
Alimkulov, Dos (Dosbol Kasymov), um pintor de grande talento, e no qual me inspirei para o personagem do mesmo nome, que aparece no final do livro, e Marie Nimirovskaya, no início apenas minha intérprete, e pouco tempo depois minha amiga.