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inteira, ela me pergunta sobre o assunto proibido: o livro que eu dizia estar escrevendo. Eu bebo uma garrafa de jerez, chuto as portas de metal no caminho, agrido verbalmente as pessoas na rua, pergunto por que viajou para tão longe se seu único objetivo era infernizar minha vida, destruir minha alegria. Ela não diz nada - mas ambos entendemos que nossa relação chegou ao seu limite. Passo uma noite sem sonhos, e no dia seguinte, depois de reclamar com o gerente sobre o telefone que não funciona direito, depois de dizer para a arrumadeira que ela não troca a roupa de cama há uma semana, depois de tomar um banho

interminável para curar a ressaca da noite anterior, eu me sento diante da máquina, apenas para mostrar a Esther que estou tentando, honestamente

tentando trabalhar.

E de repente acontece o milagre: olhando para aquela mulher na minha

frente, que acabou de preparar o café, que está lendo o jornal, cujos olhos demonstram cansaço e desespero, que está ali com seu jeito sempre silencioso, que nem sempre demonstra seu carinho através de gestos, aquela mulher que me fez dizer “sim” quando queria dizer “não”, que me obrigou a lutar pelo que ela achava - com razão - que era a minha razão de viver, que renunciou à minha companhia porque seu amor por mim era maior até mesmo que seu amor por ela, que me fez viajar em busca do meu sonho. Vendo aquela mulher quase menina, quieta, com olhos que diziam mais que qualquer palavra, muitas vezes

amedrontada em seu coração, mas sempre corajosa em seus atos, sendo capaz de amar sem humilhar-se, sem pedir perdão por lutar por seu homem - de repente, os meus dedos batem nas teclas da máquina.

Sai a primeira frase. E a segunda.

Então passo dois dias sem comer durmo apenas o necessário, as palavras

parecem brotar de um lugar desconhecido - como acontecia com as letras de música, na época em que, depois de muita briga, muita conversa sem sentido, eu e meu parceiro sabíamos que a “coisa” estava presente, pronta, e era hora de colocar no papel e nas notas musicais. Desta vez, sei que a “coisa” vem do coração de Esther, meu amor renasce de novo, eu escrevo o livro porque ela existe, superou os momentos difíceis sem queixar-se, sem olhar-se como uma vítima. Começo a contar minha experiência na única coisa que mexeu comigo em todos estes anos mais recentes - o caminho de Santiago.

À medida que escrevo, vou me dando conta que estou passando por uma

série de mudanças importantes na minha maneira de ver o mundo. Durante

muitos anos estudara e praticara magia, alquimia, ciências ocultas; era fascinado pela idéia de que um grupo de pessoas detinha um poder imenso, que não podia de maneira nenhuma ser dividido com o resto da humanidade, pois seria

arriscadíssimo deixar este potencial enorme cair em mãos inexperientes.

Participei de sociedades secretas, envolvi-me com seitas exóticas, comprei livros caríssimos e fora de mercado, gastei um tempo imenso em rituais e invocações.

Vivia entrando e saindo de grupos e confrarias, sempre excitado por encontrar-me com alguém que finalmente me revelasse os mistérios do mundo invisível, e sempre decepcionado por descobrir, no final, que a maioria destas pessoas -

embora fossem bem-intencionadas - apenas seguia este ou aquele dogma, na

maior parte das vezes transformando-se em fanáticos, justamente porque o

fanatismo é a única saída para as dúvidas que não cessam de provocar a alma do ser humano.Descobri que muitos dos rituais funcionavam, é verdade. Mas

descobri também que os que se diziam mestres e detentores dos segredos da vida, que afirmavam conhecer técnicas capazes de dar a qualquer homem a capacidade de conseguir tudo o que queria, já tinham perdido por completo a conexão com os ensinamentos dos antigos. Andar pelo caminho de Santiago, entrar em

contacto com as pessoas comuns, descobrir que o Universo falava uma

linguagem individual - chamada “sinais” - e para entendê-la bastava olhar com a mente aberta o que ocorria a nossa volta, tudo isso me fez duvidar se o ocultismo era realmente a única porta para estes mistérios. No livro sobre o caminho, começo então a discutir outras possibilidades de crescimento, e termino

concluindo com uma frase: “basta prestar atenção; as lições sempre chegam quando você está pronto, e se estiver atento aos sinais, aprenderá sempre tudo o que é necessário para o próximo passo.”

O ser humano tem dois grandes problemas: o primeiro é saber quando

começar, o segundo é saber quando parar.

Uma semana depois, começo a primeira, a segunda, a terceira revisão.

Madri já não me mata, é hora de voltar - sinto que um ciclo foi fechado e preciso urgentemente começar outro. Digo adeus à cidade como sempre disse adeus na minha vida: pensando que posso mudar de idéia e retornar um dia.

Volto para meu país com Esther, certo de que talvez seja hora de arranjar outro emprego, mas enquanto não consigo (e não consigo porque não preciso) continuo fazendo revisões do livro. Não creio que qualquer ser humano normal possa ter grande interesse pela experiência de um homem que atravessa um

caminho na Espanha, romântico mas difícil.

Quatro meses depois, quando vou fazer a décima revisão, descubro que o

manuscrito não está mais ali, e Esther tampouco. Quando estou prestes a

enlouquecer, ela volta com um recibo de correio - enviou-o para um antigo namorado seu, que agora é dono de uma pequena editora.

O ex-namorado publica. Nenhuma linha na imprensa, mas algumas pessoas

compram. Recomendam a outras, que também compram e recomendam a mais

pessoas. Seis meses depois, a primeira edição está esgotada. Um ano depois, três edições já foram impressas, começo a ganhar dinheiro com aquilo que nunca sonhei: literatura.

Não sei quanto tempo este sonho vai durar, mas resolvo viver cada

momento como se fosse o último. E noto que o sucesso me abre a porta que há tanto tempo estava esperando: outras editoras desejam publicar o próximo

trabalho.

Acontece que não se pode fazer um caminho de Santiago todo ano, então

sobre o que irei escrever? Será que o drama de sentar-me diante da máquina e fazer tudo - menos frases e parágrafos - irá começar de novo? É importante continuar dividindo minha visão de mundo, contar minhas experiências de vida.

Tento por alguns dias, muitas noites, decido que é impossível. Uma tarde, leio por acaso (por acaso?) uma interessante história em As 1001 noites; ali está o símbolo de meu próprio caminho, algo que me ajuda a compreender quem sou, e por que demorei tanto a tomar a decisão que sempre esteve me esperando. Uso o tal conto como base para escrever sobre um pastor de ovelhas que vai em busca de seu sonho, um tesouro escondido nas pirâmides do Egito. Falo do amor que fica esperando-o, como Esther havia me esperado enquanto eu dava voltas e mais voltas na vida.

Já não sou mais aquele que sonhava em ser alguma coisa: eu sou. Sou o

pastor que atravessa o deserto, mas onde está o alquimista que o ajuda a seguir adiante? Quando termino o novo romance, fico meio sem entender o que está ali: parece um conto de fadas para adultos, e os adultos estão mais interessados em guerras, sexo, histórias sobre poder. Mesmo assim, o editor aceita, o livro é publicado, e de novo os leitores o levam à lista dos mais vendidos.

Três anos depois meu casamento está ótimo, estou fazendo o que desejo,

aparece a primeira tradução, a segunda, e o sucesso - lento, mas sólido - vai levando meu trabalho aos quatro cantos do mundo.

Resolvo mudar-me para Paris, por causa dos seus cafés, dos seus escritores, de sua vida cultural. Descubro que nada mais disso existe: os cafés são lugares de turistas com fotos das pessoas que fizeram sua fama. A maioria dos escritores está mais preocupada com o estilo que com o conteúdo, tentam ser originais, mas tudo que conseguem é ser aborrecidos. Estão fechados em seu mundo, e aprendo uma expressão interessante da língua francesa: “reenviar o elevador.” Isso significa: eu falo bem do seu livro, você fala bem do meu, e criamos uma nova vida cultural, uma revolução, um novo pensamento filosófico, sofremos porque ninguém nos entende, mas afinal isso já aconteceu com os gênios do passado, faz parte de um grande artista ser incompreendido por seu tempo.