“Resposta: não há resposta. Mudam de assunto.”
- Na verdade, respondem: “Quando meus filhos crescerem, quando o meu
marido - ou minha mulher - for mais meu amigo do que um amante apaixonado, quando eu me aposentar, terei tempo livre para fazer o que sempre sonhei: viajar.
“Pergunta: 'Mas você não disse que era feliz agora? Não está fazendo o que sempre sonhou?' Aí sim, dizem que estão muito ocupados, e mudam de assunto.”
. - Se eu insisto, sempre terminam descobrindo que estava faltando alguma coisa. O dono de empresa ainda não fechou o negócio que sonhava, a dona de casa gostaria de ter mais independência ou mais dinheiro, o rapaz apaixonado tem medo de perder sua namorada, o recém-formado se pergunta se escolheu sua carreira ou a escolheram por ele, o dentista queria ser cantor, o cantor queria ser político, o político queria ser escritor, o escritor quer ser camponês. E mesmo quando eu encontro alguém que estava fazendo aquilo que escolheu, esta pessoa estava com a alma atormentada. Não encontrou a paz. Por sinal, gostaria de insistir: você está feliz?
- Não. Tenho a mulher que amo, a carreira que sempre sonhei. A liberdade
que todos os meus amigos invejam. As viagens, as honras, os cumprimentos. Mas existe algo...
- O quê?
- Acho que, se parar, a vida perde o sentido.
- Não pode relaxar, olhar Paris, segurar na minha mão e dizer: consegui o que queria, agora vamos aproveitar a vida que nos resta.
- Posso olhar Paris, posso segurar sua mão, mas não posso dizer estas
palavras.
- Nesta rua onde estamos caminhando agora, posso apostar que todo mundo
está sentindo a mesma coisa. A mulher elegante, que acaba de passar, gasta seus dias tentando parar o tempo, controlando a balança, porque acha que disso depende o amor. Olhe para o outro lado da rua: um casal com duas crianças. Eles vivem momentos de intensa felicidade quando saem para passear com os filhos, mas ao mesmo tempo o subconsciente não pára de aterrorizá-los: pensam que o emprego pode faltar, uma doença surgir, o plano de saúde não cumprir as
promessas, um dos meninos ser atropelado. Enquanto tentam se distrair,
procuram também uma maneira de se livrarem das tragédias, de se protegerem do mundo.
- E o mendigo na esquina?
- Esse eu não sei: nunca conversei com um. Ele é o retrato da infelicidade, mas seus olhos, como os olhos de qualquer mendigo, parecem estar disfarçando alguma coisa. Ali a tristeza é tão visível, que eu não consigo acreditar.
- O que está faltando?
- Não tenho a menor idéia. Olho as revistas de celebridades: todo mundo
rindo, todo mundo contente. Mas como sou casada com uma celebridade, sei que não é assim: está todo mundo rindo ou se divertindo naquele momento, naquela foto, mas de noite, ou de manhã, a história é sempre outra. “O que vou fazer para continuar aparecendo na revista?” “Como disfarçar que já não tenho dinheiro o suficiente para sustentar meu luxo?” “Como administrar meu luxo, fazê-lo maior, mais expressivo que o dos outros?” “A atriz com quem estou nesta foto rindo, celebrando, pode roubar meu papel amanhã!” “Será que estou mais bem vestida que ela? Por que sorrimos, se nos detestamos?” “Por que vendemos felicidade para os leitores da revista, se somos profundamente infelizes, escravos da fama?”
- Não somos escravos da fama.
- Deixe de ser paranóico, não estou falando da gente.
- O que você acha que acontece?
- Há anos li um livro, que contava uma história interessante. Suponhamos
que Hitler tenha vencido a guerra, liquidado com todos os judeus do mundo e convencido seu povo de que realmente existe uma raça superior. Os livros de história começam a ser mudados, e cem anos depois, seus sucessores conseguem acabar com os índios. Mais trezentos anos, e os negros são completamente
dizimados. Demora quinhentos anos, mas finalmente a poderosa máquina de
guerra consegue riscar da face da terra a raça oriental. Os livros de história falam de remotas batalhas contra bárbaros, mas ninguém lê com atenção, porque não tem a menor importância.
“Então, dois mil anos depois do nascimento do nazismo, em um bar de
Tóquio - há quase cinco séculos habitada por gente alta, de olhos azuis, Hans e Fritz tomam cerveja. Em um dado momento, Hans olha para Fritz e pergunta:
'Fritz, você acha quê tudo sempre foi assim?'
“Assim como?', quer saber Fritz.
“O mundo.
“Claro que o mundo sempre foi assim, não foi isso que aprendemos?
“É claro, não sei por que fiz esta pergunta idiota, diz Hans.
Terminam sua cerveja, falam de outras coisas, esquecem aquele assunto.”
- Não precisa ir tão longe no futuro, basta voltar 2.000 anos no passado.
Você seria capaz de adorar uma guilhotina, uma forca, uma cadeira elétrica?
- Sei aonde você quer chegar: no pior de todos os suplícios humanos, a cruz.
Lembro-me de ter lido em Cícero que era um “castigo abominável”, provocando sofrimentos horríveis antes que a morte chegasse. E, no entanto, hoje em dia as pessoas a carregam no peito, colocam na parede do quarto, passaram a identificá-
la como um símbolo religioso, esqueceram que estão diante de um instrumento de tortura.
- Ou então: dois séculos e meio se passaram antes que alguém decidisse que era preciso acabar com as festas pagãs que ocorriam no solstício de inverno, a data em que o sol está mais afastado da terra. Os apóstolos, e os sucessores dos apóstolos, estavam ocupados demais em divulgar a mensagem de Jesus, e jamais se preocuparam com o natalis invict Solis, a festa mitraica do nascimento do sol, que ocorria no dia 25 de dezembro. Até que um bispo decidiu que estas festas do solstício eram uma ameaça para a fé, e pronto! Hoje temos missas, presépios, presentes, sermões, bebês de plástico em manjedouras de madeira, e a convicção, a absoluta e completa convicção de que o Cristo nasceu neste dia!
- E temos a árvore de Nataclass="underline" sabe qual a origem?
- Não tenho a menor idéia.
- São Bonifácio decidiu “cristianizar” um ritual dedicado a honrar o deus Odin quando era menino: uma vez por ano as tribos germânicas colocavam
presentes em torno de um carvalho, para que as crianças os descobrissem.
Achavam que com isso alegravam a divindade pagã.
- Voltando à história de Hans e Fritz: você acha que a civilização, as
relações humanas, nossos desejos, nossas conquistas, tudo isso é fruto de uma história mal contada?
- Quando você escreveu sobre o caminho de Santiago, chegou à mesma
conclusão, não é verdade? Antes achava que um grupo de eleitos sabia o
significado dos símbolos mágicos; hoje em dia, sabe que todos nós conhecemos este significado - embora esteja esquecido.
- Saber isso não acrescenta nada: as pessoas fazem o maior esforço para não se lembrar, para não aceitar o imenso potencial mágico que possuem. Já que isso desequilibraria seus universos organizados.
- Mesmo assim, todos têm capacidade, não é certo?
- Certíssimo. Mas falta coragem para seguir os sonhos e os sinais. Será que é daí que vem essa tristeza?
- Não sei. E não estou afirmando que vivo infeliz o tempo todo. Me divirto, te amo, adoro meu trabalho. Mas, de vez em quando, sinto esta tristeza profunda, às vezes misturada com culpa ou com medo; a sensação passa, sempre para voltar mais adiante, e passar de novo. Como nosso Hans, faço a pergunta; como não posso respondê-la, simplesmente esqueço. Poderia ir ajudar as crianças famintas, fundar uma associação de apoio aos golfinhos, começar a tentar salvar as pessoas em nome de Jesus, fazer qualquer coisa que me dê a sensação de estar sendo úticlass="underline" mas não quero.