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- E por que esta história de ir para a guerra?

- Porque acho que, na guerra, o homem está no limite; pode morrer no dia

seguinte. Quem está no limite, age diferente.

- Você quer responder à pergunta de Hans?

- Quero.

oje, nesta bela suíte do Le Bristol, com a Torre Eiffel cintilando por

cinco minutos a cada momento que o relógio completa uma hora, a

H garrafa de vinho fechada, os cigarros acabando, as pessoas me

cumprimentando como se nada de grave tivesse realmente acontecido, eu me

pergunto: foi nesse dia, saindo do cinema, que tudo começou? Será que eu tinha a obrigação de deixá-la ir em busca desta tal história mal contada, ou devia ter sido mais duro, dizer que esquecesse o assunto, porque era minha mulher, e eu

precisava muito de sua presença e de seu apoio?

Bobagem. Na época, eu sabia, como sei agora, que não tinha outra

possibilidade além de aceitar o que ela queria. Se dissesse “escolha entre mim e sua idéia de ser correspondente de guerra”, estaria traindo tudo que Esther fizera por mim. Mesmo sem estar convencido de seu objetivo - ir em busca de “uma história mal contada” - eu concluíra que ela estava precisando um pouco de liberdade, de sair, de viver emoções fortes. O que havia de errado nisso?

Aceitei - não sem antes deixar bem claro que ela estava fazendo um grande saque no Banco de Favores (pensando bem, que coisa ridícula!). Durante dois anos, Esther acompanhou vários conflitos de perto, mudando de continente mais do que mudava de sapatos. Sempre que voltava, eu achava que desta vez iria desistir, não é possível viver muito tempo em um lugar onde não há comida decente, banho diário, cinema ou teatro. Perguntava se ela já tinha respondido à pergunta de Hans, e ela sempre me dizia que estava no caminho certo - e eu precisava me conformar. Às vezes passava alguns meses fora de casa; ao

contrário do que diz a “história oficial do casamento” (eu já estava começando a usar seus termos), esta distância fazia crescer nosso amor, mostrar o quanto éramos importantes um para o outro. Nossa relação, que achei haver atingido o ponto ideal quando nos mudamos para Paris, estava ficando cada vez melhor.

Pelo que entendi, conheceu Mikhail quando precisava de um tradutor para

acompanhá-la a algum país na Ásia Central. No início me falava dele com muito entusiasmo - uma pessoa sensível, que via o mundo como era de verdade, e não como nos tinham dito que devia ser. Era cinco anos mais jovem que ela, mas tinha uma experiência que Esther classificava de “mágica”. Eu escutava com paciência e educação, como se aquele rapaz e suas idéias me interessassem muito, mas na verdade estava distante dali, minha cabeça percorria as tarefas a fazer, as idéias que podiam surgir para um texto, as respostas para as perguntas dos jornalistas e editores, a maneira de seduzir determinada mulher que parecia interessada em mim, os planos para as viagens de promoção dos livros.

Não sei se ela notou isso. Mas eu não reparei que Mikhail foi pouco a pouco sumindo de nossas conversas, até desaparecer por completo. E seu

comportamento foi ficando cada vez mais radicaclass="underline" mesmo quando estava em

Paris, começou a sair várias noites por semana, sempre alegando que estava fazendo urna reportagem sobre os mendigos.

Achei que estava tendo um caso amoroso. Sofri durante uma semana, e me

perguntei: devia expressar minhas dúvidas, ou fingir que nada estava

acontecendo? Decidi ignorar, partindo do princípio que “o que os olhos não vêem o coração não sente”. Estava absolutamente convencido que não havia a menor possibilidade que me deixasse - tinha trabalhado muito para ajudar-me a ser quem sou, e não seria lógico abrir mão de tudo isso, por uma paixão efêmera.

Se tivesse realmente interesse no mundo de Esther, devia ter perguntado

pelo menos uma vez o que havia acontecido com seu tradutor e sua sensibilidade

“mágica”. Devia ter suspeitado deste silêncio, desta ausência de informações.

Devia ter pedido para acompanhá-la em pelo menos uma das tais “reportagens”

com mendigos.

Quando ela, vez por outra, perguntava se estava interessado em seu

trabalho, minha resposta era a mesma: “Estou interessado, mas não quero

interferir, desejo que seja livre para seguir seu sonho da maneira que escolheu, como você me ajudou.”

O que não passava de total desinteresse, é claro. Mas como as pessoas

sempre acreditam no que querem acreditar, Esther ficava contente com meu

comentário.

De novo me vem à cabeça a frase dita pelo inspetor no momento em que saí

da prisão: você está livre. O que é liberdade? É ver que seu marido não se importa nem um pouco com o que você está fazendo? É sentir-se sozinha, sem ter com quem dividir os sentimentos mais íntimos, porque na verdade a pessoa com quem se casou está concentrada no seu trabalho, na sua importante,

magnífica, difícil carreira?

Olho de novo a Torre Eiffeclass="underline" mais uma hora se passou, porque torna a

cintilar como se fosse feita de diamantes. Não sei quantas vezes isso aconteceu desde que estou aqui na janela.

Sei que, em nome da liberdade em nosso casamento, eu não percebi que

Mikhail desaparecera das conversas de minha mulher.

Para reaparecer em um bar e desaparecer de novo, desta vez levando-a com

ele, e deixando o famoso e bem-sucedido escritor como suspeito de um crime.

Ou, o que é pior, como um homem abandonado.

A pergunta de Hans

M BUENOS AIRES O Zahir é uma moeda comum de vinte centavos;

marcas de canivete ou de corta-papel riscam as letras NT e o número

E dois; 1929 é a data gravada no verso. (Em Guzerat, no final do século XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, apedrejado pelos fiéis; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou jogar no fundo do mar; nas prisões de Mahdi, em 1892, uma pequena bússola que Rudolf Carl von Slatin tocou...)

Um ano depois, eu acordo pensando na história de Jorge Luis Borges: algo

que, uma vez tocado ou visto, jamais é esquecido e vai ocupando nosso

pensamento até nos levar à loucura. Meu Zahir não são as românticas metáforas com cegos, bússolas, tigre, ou a tal moeda.

Ele tem um nome, e seu nome é Esther.

Logo depois da prisão, saí em várias capas de revistas de escândalo:

começavam alegando um possível crime, mas, para evitar um processo na justiça, terminavam sempre a matéria “afirmando” que eu havia sido inocentado

(inocentado? Eu sequer havia sido acusado!). Deixavam passar uma semana,

verificavam se a vendagem tinha sido boa (sim, tinha sido, eu era uma espécie de escritor acima de qualquer suspeita, e todos queriam saber como um homem que escreve sobre espiritualidade tinha um lado tão tenebroso para esconder). Então tornavam a atacar, afirmavam que ela tinha fugido de casa porque eu era

conhecido por meus casos extraconjugais: uma revista alemã chegou a insinuar uma possível relação com uma cantora, vinte anos mais jovem que eu, que dizia haver me encontrado em Oslo, na Noruega (era verdade, mas o encontro tinha acontecido por causa do Banco de Favores - um amigo meu pedira, e estivera conosco durante todo o único jantar juntos). A cantora dizia que não havia nada entre nós (já que não havia, por que colocaram nossa foto na capa?) e aproveitava para dizer que estava lançando um disco novo: tanto eu como a revista tínhamos sido usados para promovê-la, e até hoje não sei se o fracasso do seu trabalho foi conseqüência deste tipo de promoção barata (por sinal, seu disco não era ruim - o que atrapalhou tudo foram as notas para a imprensa).