― Deus o abençoe, Vossa Excelência ― murmurou Fissolini.
O Don pousou o charuto numa rocha próxima.
― Aceito a tua bênção, mas é preciso que compreendas. O Bianco veio salvar-me, e espero de ti que cumpras o mesmo dever. Pago-lhe uma certa quantia em dinheiro, como te pagarei a ti todos os anos. Mas, ao mais pequeno ato de deslealdade, tu e todo o teu mundo serão destruídos. Tu, a tua mulher, os teus filhos, os teus sobrinhos, os teus cunhados deixarão de existir.
Fissolini pôs-se de pé. Abraçou o Don e, subitamente, começou a chorar.
E foi assim que o Don e o seu sobrinho ficaram muito formalmente unidos. O Don amava o garoto por tê-lo convencido a mostrar misericórdia, e Astorre amava o tio por ter-lhe dado as vidas de Fissolini e dos seus homens. Foi um laço que durou o resto das suas vidas.
Na última noite que passou em Villa Grazia, Don Aprile bebeu café no jardim, enquanto Astorre comia azeitonas da barrica. O garoto estava invulgarmente silencioso e pensativo.
― Tens pena de deixar a Sicília? ― perguntou o Don.
― Gostaria de viver aqui ― respondeu Astorre, guardando no bolso os caroços das azeitonas.
― Bom, viremos os dois juntos, todos os verões ― prometeu o Don
Astorre olhou para ele como se olha para um velho e sábio amigo com uma sombra de perturbação no rosto juvenil.
― A Caterina é a sua namorada? ― perguntou.
Don Aprile riu-se.
― É uma boa amiga ― disse.
Astorre pensou nisto por um instante.
― Os meus primos sabem a respeito dela?
― Não, os meus filhos não sabem ― respondeu o Don. O interesse do garoto divertia-o, e perguntava a si mesmo o que viria a seguir.
Astorre adotou uma expressão ainda mais grave.
― Os meus primos sabem que tem amigos tão poderosos como o Bianco, que fazem tudo o que lhes disser para fazer?
― Não.
― Eu não lhes digo nada ― prometeu Astorre. v Nem sequer a respeito do rapto.
Don Aprile sentiu uma onda de orgulho encher-lhe o peito. A omertà estava embebida nos genes daquela criança.
Mais tarde nessa noite, sozinho, Astorre foi até ao canto mais afastado do jardim e, com as mãos, abriu um buraco na terra. Nesse buraco, depositou os caroços de azeitona que tinha guardado no bolso. Ergueu os olhos para o azul-profundo do céu siciliano e imaginou-se um homem já velho, como o tio, sentado no jardim numa noite como aquela, a ver crescer as suas oliveiras.
A partir daí, tudo o que aconteceu estava destinado a acontecer, acreditava o Don. Ele e o garoto fizeram a sua viagem anual à Sicília até que Astorre completou dezesseis anos. No espírito de Don Aprile começava a formar-se uma imagem, um vago esboço do destino do rapaz.
Foi Nicole quem criou a crise que atirou Astorre para esse destino. Com dezoito anos, mais dois do que o suposto primo, apaixonou-se por ele e, com o seu temperamento tempestuoso, não tentou sequer ocultar o fato. Assoberbou completamente o suscetível adolescente. Tornaram-se íntimos com toda a fúria escaldante da juventude.
O Don não podia consentir naquilo, mas era um general que ajustava as suas tácticas ao terreno. Nunca deixou transparecer que sabia o que se passava.
Certa noite, chamou Astorre ao seu gabinete e disse-lhe que ia mandá-lo para Inglaterra, para estudar e aprender o oficio de banqueiro com um tal Sr. Pryor, de Londres. Não adiantou qualquer outra razão, sabendo que o rapaz perceberia que estavam a mandá-lo embora para pôr fim àquele romance. Mas não contara com a filha, que ficara a escutar atrás da porta. Nicole entrou de rompante no escritório, e a cólera que a dominava tornava-a ainda mais bela.
― Não vai mandá-lo embora! ― gritou ao pai ― Fugimos os dois juntos!
O Don sorriu-lhe e disse, apaziguadoramente: ― Precisam os dois de acabar os estudos.
Nicole voltou-se para Astorre, que corava de atrapalhação.
― Astorre, tu não vais, pois não? ― perguntou.
Astorre não respondeu, e Nicole desfez-se em lágrimas.
Seria difícil a qualquer pai não se deixar comover por semelhante cena, mas o Don estava divertido. A filha era magnífica, verdadeiramente mafiosa na velha acepção, um prêmio digno de um rei. Apesar disso, durante as semanas que se seguiram recusou-se a falar com o pai, e trancou-se no quarto. Mas o Don sabia que os corações destroçados nunca ficam destroçados para sempre, e não se preocupou.
Divertia-o ainda mais ver Astorre apanhado na armadilha em que caem todos os adolescentes. É certo que amava Nicole. É certo que a paixão e a devoção dela o faziam sentir-se a pessoa mais importante à face da Terra. Qualquer jovem se deixaria seduzir por uma tal atenção. Mas o Don sabia com igual certeza que, no fundo, o que ele queria era uma desculpa que o libertasse de quaisquer peias que lhe entravassem o caminho em direção às glórias da vida. Sorriu. Aquele jovem tinha todos os instintos certos. Era tempo de iniciar a sua verdadeira aprendizagem.
Três anos depois de ter-se retirado, Don Raymonde Aprile sentia a segurança e a satisfação do homem que durante toda a sua vida fez as escolhas certas. Sentia-se inclusivamente tão seguro que começou a desenvolver uma relação mais íntima com os filhos, gozando por fim as alegrias da paternidade... pelo menos em certa medida.
Valerius, que passara a maior parte da sua vida em postos militares no estrangeiro, nunca fôra muito chegado ao pai Agora que estava colocado em West Point, encontravam-se com mais freqüência e começaram a falar mais abertamente. Mas era difícil.
Com Marcantonio, era diferente. O Don e o seu segundo filho tinham uma espécie de relação especial. Marcantonio falava do seu trabalho na televisão, da excitação de todo o processo, do seu dever para com o público, do seu desejo de tornar o mundo um lugar melhor. Para o Dom as vidas de pessoas assim eram como contos de fadas. Sentia-se fascinado por elas.
Por vezes, durante os jantares de família, Marcantonio e o pai discutiam amigavelmente, para entretenimento dos outros. Certa noite, o Don disse ao filho:
― Nunca na minha vida conheci pessoas tão boas ou tão más como as personagens das vossas histórias.
― É o que as pessoas querem, e nós temos de lho dar.
Noutra ocasião, durante uma reunião familiar, Valerius tentara explicar as razões que justificavam a Guerra do Golfo, a qual, além de defender importantes interesses econômicos e os direitos humanos, fôra um autentico maná para a rede de televisão de Marcantonio. Mas o Don limitara-se a encolher os ombros. Todos aqueles conflitos eram refinamentos de poder que não lhe interessavam.
― Diz-me ― pedira a Valerius ―, como é que as nações ganham realmente uma guerra? Qual é o fator decisivo?
Valerius pensara por um instante.
― Por um lado, há os exércitos, os generais brilhantes. Há as grandes batalhas. Umas que se ganham, outras que se perdem. Quando trabalhei nos serviços de informações, e analisamos todos os fatores, chegamos a uma conclusão. O país que produz mais aço ganha a guerra, é tão simples como isso.
O Don assentira com a cabeça, finalmente satisfeito.
O seu relacionamento mais caloroso e intenso era, porém, com Nicole. Orgulhava-se dos êxitos dela, da sua beleza física, da sua natureza apaixonada, da sua inteligência. E ela, é certo, apesar de jovem, com apenas trinta e dois anos, era já uma advogada poderosa, com bons contatos políticos, que não receava fosse quem fosse que representasse os poderes estabelecidos.