Neste ponto, o Don ajudava-a secretamente; o gabinete de advogados a que estava ligada devia-lhe muito. Mas os irmãos sentiam-se pouco à-vontade com ela por duas razões: em primeiro lugar, continuava solteira; depois, fazia demasiado trabalho pro bono. Por muito que a admirasse, como admirava, o Don nunca conseguiria levá-la a sério no mundo real. Era, ao fim e ao cabo, uma mulher. E uma mulher com gostos estranhos em matéria de homens.
Durante os jantares familiares, pai e filha discutiam constantemente, como dois grandes gatos empenhados numa brincadeira perigosa, por vezes fazendo sangue. Havia entre os dois um ponto de discórdia sério, a única coisa capaz de afetar a inalterável afabilidade do Don. Nicole acreditava na sacralidade da vida humana, considerava o castigo capital uma abominação. Fora ela quem organizara e agora liderava a Campanha Contra a Pena de Morte.
― Porquê? ― perguntava o Don.
E Nicole enfurecia-se uma vez mais. Porque acreditava que a pena de morte acabaria por destruir a Humanidade. Acreditava que se matar fosse permitido em certas circunstâncias, então poderia ser igualmente justificado por outro conjunto de circunstâncias, outro conjunto de crenças. No fim, não serviria a evolução nem a civilização. E acreditar nisto punha-a em conflito constante com o irmão Valerius. Ao fim e ao cabo, não era essa a missão do exército? Nicole não queria saber de razões. Matar era matar, e acabaria por fazer a Humanidade voltar ao canibalismo, ou coisa pior. Sempre que tinha oportunidade, batia-se nos tribunais de uma ponta a outra do país para salvar assassinos condenados. O Dom apesar de considerar tudo isto uma perfeita tolice, propôs um brinde durante um jantar de família, depois de ela ter defendido vitoriosamente, e gratuitamente, um caso famoso. Obtivera a comutação da pena de morte pronunciada contra um dos mais notórios criminosos da década, um homem que matara o seu melhor amigo e em seguida sodomizara a viúva. Durante a fuga, abatera dois empregados de uma bomba de gasolina para os roubar. Não satisfeito, violara e assassinara uma garota de dez anos. A sua carreira chegara ao fim quando tentara matar dois polícias dentro de um carro-patrulha. Nicole ganhara o caso alegando insanidade, com a garantia de que o homem passaria o resto da sua vida numa instituição para doentes mentais perigosos, sem possibilidade de libertação.
O jantar de família seguinte foi para comemorar a vitória de Nicole num outro caso. Dessa vez, a visada era ela própria. Num julgamento recente, defendera um controverso ponto legal, com considerável risco para si mesma. Citada perante a Ordem por violação da ética, fora absolvida. Por isso estava exultante.
Don Aprile, particularmente bem-disposto, mostrou um interesse invulgar pelo caso. Felicitou a filha pela absolvição, mas estava um pouco confuso, ou fingiu estar, pelas circunstâncias. Nicole teve de explicar-lhe.
Defendera um homem de trinta anos que violara, sodomizara. e assassinara uma menina de doze, e em seguida escondera o corpo para que não pudesse ser encontrado pela polícia. As provas circunstanciais contra ele eram fortes, mas, sem um corpo, os jurados e o juiz hesitariam em pronunciar uma sentença de morte. Os pais da vítima viviam na angústia do desejo frustrado de encontrar os despojos da filha.
O assassino confidenciara a Nicole, sua advogada, onde enterrara o corpo, e autorizara-a a negociar um acordo: confessaria tudo a troco de uma sentença de prisão perpétua em vez de uma condenação à morte. No entanto, quando Nicole iniciara as negociações com o ministério público, vira-se confrontada com uma ameaça de acusação judicial se não revelasse imediatamente o paradeiro do cadáver. Firme na sua convicção da necessidade de proteger a confidencialidade entre advogado e cliente, recusara fazê-lo. E um juiz dera-lhe razão. O delegado do ministério público, depois de consultar os pais da vítima, aceitara finalmente o acordo.
O assassino dissera-lhes que desmembrara o corpo e o metera numa caixa cheia de gelo que depois enterrara num pântano próximo, em Nova Jérsey.
Mas então a Ordem acusara-a de ter-se envolvido numa negociação que violava a ética. Era dessa acusação que acabava de ser absolvida.
O Don fez um brinde a todos os seus filhos, e então perguntou a Nicole:
― E tu, portaste-te com honra em todo este assunto?
― O que estava em causa era uma questão de princípio. Não se pode deixar que o governo quebre a confidencialidade das relações cliente-advogado numa dada circunstância, por mais grave que seja, pois caso contrário deixará de ser sacrossanta.
― E não tiveste pena da mãe e do pai da menina assassinada? ― insistiu o Don.
― Claro que tive ― replicou Nicole, irritada. ― Mas não podia permitir que isso afetasse um princípio básico da lei. Custou-me muito, evidentemente, a quem não custaria? Mas infelizmente, se queremos estabelecer precedentes para futuras leis, há que fazer sacrifícios.
― Mas mesmo assim a Ordem dos Advogados levou-te a julgamento.
― Para salvar a face. Foi uma jogada política. As pessoas comuns, que não conhecem as complexidades do sistema legal, recusam-se a aceitar estes princípios da lei, e houve muitos protestos. O meu julgamento serviu para esclarecer a questão. Era preciso que um juiz muito proeminente viesse a público explicar que eu tinha o direito, nos termos da Constituição, de recusar-me a revelar a informação.
― Bravo! ― exclamou o Dom jovialmente. ― A lei é sempre cheia de surpresas. Mas só para os advogados, claro.
Nicole sabia que ele estava a troçar.
― Sem um corpo de leis, não pode existir civilização ― retorquiu secamente.
― É verdade ― disse o Dom como que para aplacar a filha. ― Mas a mim parece-me injusto que um homem que cometeu um crime tão terrível escape com vida.
― Pode ser ― admitiu Nicole. - Mas o nosso sistema legal baseia-se neste tipo de acordos. É verdade que muitos criminosos recebem sentenças inferiores àquelas que mereciam. Mas, de certo modo, é uma coisa boa. O perdão cura. E, a longo prazo, aqueles que cometeram crimes contra a nossa sociedade serão mais facilmente reabilitados.
Foi, pois, com bem-humorado sarcasmo que o Don propôs o seu brinde.
― Mas diz-me, Nicole ― pediu, voltando à carga ―, alguma vez acreditaste que o homem era inocente por razões de insanidade? Ao fim e ao cabo, ele usou do seu livre arbítrio.
Valérius pousou na irmã um olhar frio, especulativo. Era um homem alto, de quarenta anos, com um bigode espesso e curto e cabelos que começavam já a ficaar grisalhos. Como oficial de Informações, também ele tomara decisões que ignoravam a moralidade humana. Estava interessado em ouvir o que ela tinha a dizer.
Marcantonio compreendia a irmã, sabia que aspirava a uma vida normal em parte por vergonha da vida do pai. Preocupava-o sobretudo a possibilidade de ela dizer qualquer coisa precipitada, qualquer coisa que o pai nunca pudesse perdoar-lhe.
Quanto a Astorre, estava extasiado por Nicole, pelos seus olhos coruscantes, pela incrível energia com que respondia às ferroadas do pai. Recordou-se de quando faziam amor, havia já tantos anos, e sentia o afeto que ela obviamente ainda sentia por ele. Mas agora tinha-se transformado, já não era o mesmo que fôra no tempo em que eram amantes. Ambos o sabiam. Perguntou a si mesmo se os irmãos dela tinham conhecimento daquele antigo caso. E também ele receava que a discussão rompesse os laços que uniam aquela família, a família que amava, que era o seu único refúgio. Esperava que Nicole não fosse demasiado longe. Mas não partilhava minimamente os pontos de vista dela. Os anos que passara na Sicília tinham-lhe ensinado que estava enganada. Principalmente, espantava-o que as duas pessoas que mais amava no mundo pudessem ser tão diferentes uma da outra. E ocorreu-lhe que, mesmo que ela tivesse razão, nunca poderia pôr-se do seu lado contra o Dom.