Nicole enfrentou destemidamente o olhar do pai.
― Não acredito que tivesse livre-arbítrio ― disse. ― Foi forçado pelas circunstâncias da vida... pelas suas percepções distorcidas, pela sua herança genética, a sua bioquímica, a ignorância da medicina... Era um louco. Claro que acreditei.
O Don meditou nisto por alguns instantes.
― Diz-me, se ele te tivesse confessado que todas as suas desculpas eram falsas, terias mesmo assim tentado salvar-lhe a vida?
― Sim ― admitiu Nicole. ― A vida de cada indivíduo é sagrada. O Estado não tem o direito de tirá-la.
O Don sorriu-lhe, trocista.
― Isso é o teu sangue italiano a falar. Sabias que a Itália moderna nunca teve a pena de morte? Tantas vidas humanas salvas!
O sarcasmo fez estremecer os filhos e Astorre, mas Nicole não se deixou impressionar.
― Quando o Estado, a coberto da justiça, comete um assassínio premeditado, pratica um ato de barbárie ― replicou, veementemente. ― Penso que o pai, sobretudo o pai, deveria concordar. ― Era um desafio, uma referência clara à fama do Don. Nicole riu-se e continuou, mais cordatamente: ― Temos uma alternativa. O criminoso é encarcerado numa instituição ou numa prisão, por toda a vida, sem possibilidade de redução de pena ou de liberdade condicional.
O Don olhou-a friamente.
― Uma coisa de cada vez ― disse. ― É verdade que concordo com o direito do Estado de tirar uma vida humana. Quanto à tua prisão perpétua sem possibilidade de redução de pena ou liberdade condicional, é uma anedota. Passados vinte anos descobrem-se provas supostamente novas, ou assume-se que o criminoso está reabilitado e é agora uma pessoa diferente, e lá se derrama o leite da compaixão humana. Mas ninguém se preocupa com os mortos. O homem sai em liberdade. E isso não é realmente importante...
Nicole franziu o sobrolho.
― Pai, nunca afirmei que a vítima não é importante. Mas tirar uma vida não lhe devolverá a que lhe foi roubada. E quanto mais tempo aceitarmos que se mate, seja em que circunstâncias for, mais tempo se continuará a matar.
O Don não respondeu imediatamente. Bebeu um gole de vinho e olhou à sua volta, para os dois filhos e para Astorre.
― Deixa-me falar-te da realidade ― disse então, voltando-se para a filha, e a sua voz soou com uma intensidade que raramente assumia. ― Dizes que a vida humana é sagrada? Com base em que provas? Em que altura da História? As guerras que matam milhões são aceitas por todos os governos e religiões. As chacinas de milhares de inimigos em disputas políticas, por interesses econômicos, são coisas de todos os tempos. Quantas vezes o dinheiro foi posto acima da santidade da vida humana? E tu própria aceitas que se tire uma vida humana quando livras os teus clientes do castigo que merecem.
Os olhos negros de Nicole chisparam.
― Nunca o aceitei! Nunca o desculpei! Acho que é um ato bárbaro. O que me recuso é a contribuir para que haja mais mortes!
O Don falou então mais calmamente, mas com mais seriedade:
― Acima de tudo, a vítima, a pessoa amada, jaz debaixo de terra. É banida para sempre deste mundo. Nunca mais veremos o seu rosto, nunca mais ouviremos a sua voz, nunca mais tocaremos a sua pele. Está na escuridão, perdida para nós e para o mundo. Ninguém falou enquanto o Don bebia um novo gole de vinho.
― Agora, minha Nicole, escuta-me. O teu cliente, o teu assassino, é condenado a prisão perpétua. Ficará atrás de grades ou num hospício pelo resto da sua vida. É o que dizes. Mas todas as manhãs verá nascer o Sol, provará o sabor da comida quente, ouvirá música, o sangue correr-lhe-á nas veias e interessa-lo-á pelas coisas do mundo. Aqueles que o amam poderão continuar a abraçá-lo. Segundo sei, poderá até estudar, aprender carpintaria, fabricar uma mesa. Em suma, vive. E isso é injusto.
Nicole era resoluta. Não cedeu.
― Pai, para domar um animal, não o deixamos comer carne crua. Não o deixamos prová-la, pois caso contrário quererá mais. Quanto mais se mata, mais fácil se torna matar. Não consegue compreender isto?
Como ele não respondesse, continuou:
― E quem pode decidir o que é justo ou injusto? Onde é que traçamos a linha que separa uma coisa da outra?
Aquilo que pretendia ser um desafio soou como uma súplica de compreensão para tantos anos de dúvida a respeito dele.
Todos esperavam uma explosão de cólera ante tamanha insolência mas subitamente o Don estava de bom humor.
― Tenho tido os meus momentos de fraqueza ― declarou ―, mas nunca deixo um filho julgar os pais. Os filhos são inúteis e só vivem por nossa condescendência. Além disso, considero-me acima de qualquer censura como pai. Criei três filhos que são pilares da sociedade, talentosos, realizados e bem sucedidos. E não totalmente indefesos face ao destino. Terá algum de vocês censuras a fazer-me?
Neste ponto, Nicole esvaziou-se de toda a sua ira.
― Não ― disse. ― Como pai, ninguém o pode censurar. Mas esqueceu-se de uma coisa. Só os oprimidos são enforcados. Os ricos arranjam sempre maneira de escapar ao castigo.
O Don olhou para ela com uma expressão muito séria.
― Por que razão, nesse caso, não lutas por modificar a lei de modo que os ricos sejam enforcados tal como os pobres? Seria mais inteligente.
― Se assim fosse restariam muito poucos de nós ― murmurou Astorre, sorrindo jovialmente. E este comentário desfez a tensão.
― A maior virtude da Humanidade é a misericórdia ― disse Nicole. Uma sociedade verdadeiramente iluminada não executa um ser humano, e abstém-se de punir além daquilo que a justiça e o bom senso permitem.
Foi só então que o Don perdeu o seu habitual bom humor.
― Onde foste tu buscar essas idéias? ― perguntou. - São comodistas e cobardes... mais, são blasfemas. Quem é mais impiedoso do que Deus? ― Ele não perdoa, não proíbe o castigo. Há um paraíso e há um inferno porque Ele o decretou. Não baniu a dor e o desgosto do Seu mundo. É Seu dever supremo mostrar apenas a misericórdia necessária. Quem és tu para conceder uma tão maravilhosa graça? É pura arrogância. Pensas que com tanta santidade poderás criar um mundo melhor? Lembra-te, tudo o que os santos podem fazer é murmurar orações ao ouvido de Deus, e mesmo assim só depois de terem conquistado esse direito à custa do seu próprio martírio. Não. É nosso dever perseguir o nosso próximo. Ou os grandes pecados que ele poderia ser capaz de cometer. Fazendo o contrário, estaríamos a entregar o nosso mundo ao diabo.
Nicole engasgou-se de fúria, Valerius e Marcantonio sorriram. Astorre inclinou a cabeça, como se estivesse a rezar.
Finalmente, Nicole recuperou o suficiente para dizer.
― Pai, como moralista, é um desastre. E não é com certeza exemplo que se siga.
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto cada um revia as recordações do seu estranho relacionamento com o Don. Nicole nunca acreditara verdadeiramente nas histórias que ouvira a respeito do pai, e no entanto sempre receara que fossem verdadeiras. Marcantonio lembrou-se de certa vez um colega da televisão lhe ter perguntado, maliciosamente: “Como é que o teu pai vos trata, a ti e aos outros filhos?” E ele, depois de ter ponderado cuidadosamente a pergunta, sabendo que o homem se referia à reputação do pai, respondera muito sério: “O meu pai é muito cordial para todos nós.”