Antes de falar com a filha do Don, decidiu tentar a sorte com o filho mais velho, Valerius Aprile. Dirigiu-se, pois, acompanhado por Boxton, à Academia de West Point, onde Valerius, coronel do Exército dos Estados Unidos, ensinava tática militar ― ou lá o que fosse, pensou Cilke.
Valerius recebeu-os num amplo gabinete sobranceiro à parada, onde um pelotão de cadetes fazia exercícios de ordem unida. Não se mostrou afável como o irmão, mas também não se poderia dizer que fosse indelicado. Cilke perguntou-lhe se conhecia ao pai alguns inimigos.
― Não ― respondeu. ― Passei a maior parte dos últimos vinte anos fora do país. Estive presente nas festas de família, sempre que pude. A única preocupação do meu pai era que eu chegasse a general. Queria ver-me usar a estrela. Até brigadeiro já teria bastado para fazê-lo feliz.
― Era então um patriota? ― perguntou Cilke, com uma ponta de ironia.
― Amava o seu país ― respondeu Valerius, secamente.
― Foi ele que conseguiu inscrevê-lo como cadete? ― pressionou
― Julgo que sim. Mas nunca teria conseguido fazer-me general. Suponho que a influência dele no Pentágono não chegava a tanto. Ou então sou eu que não tenho pura e simplesmente as qualidades necessárias. Seja como for, estou satisfeito. Encontrei o meu lugar.
― Tem então a certeza de que não pode dar-nos qualquer pista sobre possíveis inimigos do seu pai ― insistiu Cilke.
― Não tinha nenhuns. O meu pai teria sido um excelente general. Quando se retirou, deixou todos os seus assuntos em ordem. Quando usou o poder, fê-lo com força decisiva. Dispunha dos homens e dos meios.
― Não parece muito afetado por alguém ter assassinado o seu pai. Não alimenta desejos de vingança?
― Não mais do que por um camarada caído no campo de batalha. Estou interessado, evidentemente. Ninguém gosta de ver o pai assassinado.
― Sabe alguma coisa a respeito do testamento?
― Quanto a isso, terá de falar com a minha irmã.
Perto do fim dessa mesma tarde, Cilke e Boxton estavam no gabinete de Nicole Aprile, onde a recepção que encontraram foi completamente diferente. Para ali chegarem, tinham tido de passar por três secretárias e uma guarda-costas pessoal, como Cilke percebeu imediatamente, embora se tivesse apresentado como adjunta-executiva, uma mulher com todo o ar de ser capaz de arrumá-lo a ele e a Boxton numa questão de segundos. Pela maneira como se movia, via-se que tinha a força de um homem. Adivinhavam-se-lhe os músculos por baixo da roupa ― um casaco de linho sobre uma camisola de malha, tão justa que lhe esmagava os seios, e calças pretas.
O acolhimento de Nicole não foi caloroso, embora estivesse extremamente atraente no seu conjunto de haute couture violeta-escuro. Usava umas enormes argolas de ouro nas orelhas e os cabelos, negros e brilhantes, caídos sobre os ombros. A dureza das feições finamente desenhadas e duras era desmentida por uns grandes olhos, doces e castanhos.
― Meus senhores, posso dispensar-lhes vinte minutos ― anunciou
Vestia uma blusa com folhos por baixo do casaco violeta e os punhos rendados quase lhe cobriam as mãos quando estendeu a direita para receber a identificação de Cilke. Estudou-a atentamente e comentou:
― Agente especial encarregado? Não será demais para uma investigação de rotina?
Falou num tom que Cilke conhecia bem, um tom que detestava. Era o tom ligeiramente admonitório que os procuradores federais usavam para lidar com o braço investigativo que chefiavam.
― O seu pai era um homem muito importante ― respondeu.
― Sim, até ter-se retirado e colocado sob a proteção da lei ― observou Nicole, amargamente.
― O que torna a sua morte ainda mais misteriosa ― disse Cilke. ― Tínhamos a esperança de que pudesse dar-nos uma idéia de alguém que tivesse razões para lhe guardar rancor.
― Não acho que tenha sido assim tão misteriosa ― redargüiu Nicole. Conhecem a vida dele muito melhor do que eu. Tinha inimigos de sobra. Incluindo o senhor.
― Nem mesmo os nossos piores críticos se lembraram alguma vez de acusar o FBI de ter cometido um assassínio nas escadas de uma catedral ― disse Cilke, secamente. ― E eu não era inimigo dele. Era um representante da lei. Depois de retirar-se, o seu pai deixou de ter inimigos. Comprou-os todos. ― Fez uma curta pausa. ― Acho curioso o fato de nem a senhora nem os seus irmãos parecerem interessados em saber quem foi o homem que assassinou o vosso pai.
― Porque não somos hipócritas ― retorquiu Nicole. ― O meu pai não era precisamente um santo. Jogou o jogo e pagou o preço. ― Interrompeu-se por um instante. ― E engana-se a respeito de eu não estar interessada. Na realidade, vou pedir o processo do FBI sobre o meu pai, ao abrigo da Lei de Liberdade de Informação. Espero que não levante problemas, pois nesse caso seríamos inimigos.
― Está no seu direito ― disse Cilke. ― Mas talvez possa ajudar-me dizendo-me quais são as provisões do testamento do seu pai.
― Ainda não abri o testamento.
― Mas é a executora, segundo me disseram. Deve saber o que diz.
― Vamos registrá-lo amanhã. O conteúdo será tornado público.
― Há alguma coisa que possa dizer-me agora e que possa ajudar-me? ― insistiu Cilke.
― Apenas que não tenciono reformar-me antes de tempo.
― Nesse caso, por que não me diz nada hoje?
― Porque não sou obrigada ― respondeu Nicole, friamente.
― Conheci bastante bem o seu pai ― disse Cilke. ― ele ter-se-ia mostrado mais razoável.
Pela primeira vez, Nicole olhou para ele com respeito.
― Isso é verdade ― admitiu. ― Ok. O meu pai distribuiu uma porção de dinheiro antes de morrer. Deixou-nos apenas os bancos. Eu e os meus irmãos ficamos com quarenta e nove por cento; os outros cinqüenta e um por cento vão para o nosso primo, Astorre Viola.
― O que é que pode dizer-me a respeito dele? ― pediu Cilke.
― O Astorre é mais novo do que eu. Nunca esteve envolvido nos negócios do meu pai e todos nós o adoramos por ser um tonto encantador. Claro que agora passei a gostar um bocadinho menos dele.
Cilke passou em revista a sua própria memória. Não se lembrava de qualquer processo sobre Astorre Viola. E no entanto, tinha de haver um.
― Pode dar-me o telefone e a morada dele?
― Com certeza ― aquiesceu Nicole. ― Mas vai perder o seu tempo, pode crer.
― Tenho de esclarecer todos os pormenores ― explicou Cilke, apologeticamente.
― E por que está o FBI interessado? Trata-se de um crime puramente local.
A voz dele soou fria quando respondeu:
― Os bancos que o seu pai controlava são bancos internacionais. Pode haver complicações relacionadas com divisas.
― A sério? ― exclamou Nicole. ― Nesse caso, o melhor é pedir já o tal processo. Ao fim e ao cabo, uma parte desses bancos é agora minha.
E lançou-lhe um olhar de desafio.
Cilke soube então que ia ter de mantê-la debaixo de olho.
No dia seguinte, Cilke e Boxton foram de carro até Westchester Courity Para uma conversa com Astorre Viola. A propriedade incluía um bosque, uma grande casa e três barracões. Num prado vedado por uma cerca de troncos baixa e fechado por uma cancela de ferro forjado pastavam seis cavalos. Havia quatro automóveis e uma caminhonete estacionados no pátio diante da casa. Cilke memorizou as matriculas de dois deles.