Uma mulher com cerca de setenta anos abriu-lhes a porta e conduziu-os a uma luxuosa sala de estar cheia de equipamento de gravação. Quatro jovens liam pautas musicais pousadas em estantes e um quinto sentava-se ao piano ― um conjunto profissional de jaz, com saxofone, baixo, guitarra e percussão.
De pé diante de um microfone e de frente para eles, Astorre cantava com voz rouca. Até Cilke sabia que aquele era o tipo de música que nunca teria público.
Astorre interrompeu a canção e disse, dirigindo-se aos visitantes:
― Importam-se de esperar cinco minutos até acabarmos de gravar? Depois os meus amigos embrulham a tralha e ficamos com todo o tempo que quiserem.
― Com certeza - respondeu Cilke.
― Traz-lhes café ― ordenou Astorre à velha criada. Cilke gostou do gesto. Não se limitara a oferecer-lhes café por cortesia, mandara que lhes fosse servido.
Tiveram, no entanto, de esperar mais do que cinco minutos. Astorre estava a gravar uma canção popular italiana ― enquanto dedilhava um banjo ― e cantava num rude dialeto que Cilke não entendia. Era agradável ouvi-lo, um pouco como ouvir a nossa própria voz no chuveiro.
― Não foi assim tão mau... Ou foi? ― perguntou Astorre com uma gargalhada quando ficaram finalmente sozinhos, enquanto limpava o rosto a uma toalha.
Cilke deu por si a gostar imediatamente dele. Com cerca de trinta anos, irradiava uma espécie de vitalidade juvenil e não parecia levar-se a si mesmo muito a sério. Era alto e bem constituído, com a graciosidade atlética de um pugilista. Tinha essa beleza morena e as feições irregulares mas bem talhadas que se vêem por vezes nos retratos do século XV. Não parecia vaidoso, mas usava ao pescoço uma gargantilha de ouro com cinco centímetros de largura do qual estava suspenso um medalhão gravado com a imagem da Virgem Maria.
― Foi ótimo ― disse Cilke. ― Está a gravar um disco para distribuição?
Astorre sorriu. Um sorriso franco, aberto.
― Quem me dera. Não, não sou suficientemente bom para isso. Mas adoro estas canções e ofereço-as aos meus amigos, como presentes.
Cilke decidiu ir ao assunto.
― Trata-se de simples rotina ― declarou. ― Sabe de alguém que pudesse querer fazer mal ao seu tio?
― Absolutamente ninguém ― respondeu Astorre, com um ar muito sério.
Cilke estava farto de ouvir aquela resposta. Toda a gente tinha inimigos, especialmente Don Raymonde Aprile.
― Herda o controle dos bancos ― disse. Eram assim tão chegados?
― Para ser franco, não percebo muito bem porque ― respondeu Astorre. ― É verdade que em miúdo era um dos seus preferidos. Montou-me o meu negócio, e depois esqueceu-se mais ou menos de mim.
― Que espécie de negócio? ― quis saber Cilke.
― Importo de Itália todas as melhores marcas de macaroni.
Cilke atirou-lhe um olhar cético.
― Macaroni?
Astorre sorriu; estava habituado àquela reação. Não era na verdade um negócio particularmente fascinante.
― Sabe como o Lee Iacocca nunca diz automóveis, diz sempre carro? Pois bem, no meu negócio nunca dizemos pasta ou spaghetti, dizemos sempre macaroni.
― E agora vai ser banqueiro? - espantou-se Cilke.
― Vou experimentar ― declarou Astorre.
Já no carro, Cilke perguntou a Boxton:
― O que é que achas?
Gostava imenso de Bill Boxton. O homem acreditava no Bureau, com ele ― que era justo, que era incorruptível, que era de longe muito superior a qualquer outra força policial em matéria de eficiência. Aquelas entrevistas eram feitas em parte a pensar nele, para dar-lhe traquejo.
― A mim pareceram-me todos muito honestos ― respondeu Boxton. ― Mas não parecem sempre?
Sim, pareciam sempre, pensou Cilke. Então, um pormenor curioso saltou-lhe à memória. O medalhão suspenso da gargantilha de ouro de Astorre não balouçara, não deslizara, não saíra do seu lugar uma única vez.
A última entrevista era para Cilke a mais importante. Foi com Timmona Portella, o chefe reinante da Máfia nova-iorquina, o único, além Don, que escapara à prisão depois das investigações do FBI.
Portella geria os seus extensos negócios a partir do vasto apartamento de cobertura de um dos prédios que possuía no West Side. O resto do edifício era ocupado por empresas subsidiárias que controlava. Ali, a segurança era tão apertada como em Fort Knox, e o próprio Portella deslocava-se de helicóptero ― o telhado dispunha de uma placa de aterragem entre o seu quartel-general e a mansão que tinha em Nova Jersey. A verdade é que raramente pisava as ruas de Nova Iorque.
Recebeu Cilke e Boxton no seu gabinete, mobilado com sofás excessivamente grandes, onde os visitantes quase se afundavam, e protegido por paredes de vidro à prova de bala que ofereciam uma vista magnífica da cidade. Era um homem enorme, muito elegante no seu fato escuro e camisa ofuscantemente branca.
Cilke apertou-lhe a gorda mão e admirou a gravata de tons escuros que lhe pendia do pescoço grosso como o de um touro.
― Kurt, que posso fazer por si? ― perguntou Portella numa voz de tenor que ecoou pela sala. Ignorou completamente Bill Boxton.
― Estou a investigar o caso Aprile ― respondeu Cilke. ― Pensei que talvez tivesse qualquer informação que pudesse ajudar-me.
― Uma tragédia, aquela morte ― declarou Portella. ― Toda a gente adorava o Raymonde Aprile. Não tenho a menor idéia de quem possa ter feito semelhante coisa. Nos últimos anos da sua vida, Don Aprile foi um homem tão bom! Tornou-se um santo, um verdadeiro santo. Distribuiu dinheiro como um Rockefeller. Quando Deus o levou, a alma dele estava pura.
― Não foi Deus que o levou ― disse Cilke secamente. ― Foi um golpe extremamente profissional. Tem de haver um motivo. ― Portella semicerrou os olhos, mas não disse palavra, de modo que Cilke continuou ―: Você foi colega dele durante muitos anos. Deve saber qualquer coisa. Que me diz desse tal sobrinho que herda os bancos?
― Eu e Don Aprile fizemos alguns negócios juntos há já muitos anos ― respondeu Portella. ― Quando se retirou, podia com toda a facilidade ter-me mandado matar. O fato de eu estar vivo prova que não éramos inimigos. Quanto ao sobrinho, tudo o que sei é que é um artista. Canta em casamentos, em festinhas, por vezes até em pequenos clubes noturnos. Um desses jovens de que os velhos como eu gostam. E vende bom macaroni italiano. Todos os meus restaurantes o usam. ― Fez uma pausa e suspirou. ―- É sempre um mistério quando um grande homem é morto.
― Sabe que a sua ajuda será apreciada ― disse Cilke.
― Claro. O FBI joga sempre limpo. Sei que a minha ajuda será apreciada.
Dirigiu a Cilke e a Boxton um caloroso sorriso que lhe pôs à mostra os dentes quadrados, quase perfeitos.
No caminho de regresso aos escritórios do Bureati, Boxton disse a Cilke:
― Estive a ler a ficha deste tipo. É um dos grandalhões da pornografia e das drogas, além de assassino. Como é que nunca conseguimos apanhá-lo?
Kurt Cilke mandou colocar sob vigilância eletrônica as residências de Nicole Aprile e Astorre Viola. Um juiz federal acomodatício assinou a ordem necessária. Não que suspeitasse verdadeiramente deles. Só queria ter a certeza. Nicole era uma arruaceira nata e Astorre parecia demasiado bom para ser verdade. Vigiar Valerius estava fora de questão, uma vez que a sua casa ficava na interior do perímetro de West Point.