No fim da gravação, Cilke voltou-se para Boxton.
― O que é que achas? ― perguntou.
― Oh, tal como o Astorre, acho que és um tipo porreiro ― respondeu Boxton.
Cilke riu-se.
― Não é nada disso. O que quero dizer é se estas pessoas poderão ser consideradas suspeitas do crime.
― Não ― disse Boxton ― Para começar, são filhos dele, e em segundo lugar, não têm os conhecimentos.
― Mas são espertos ― observou Cilke. ― Fizeram a pergunta cruciaclass="underline" porquê.
― Talvez, mas não somos nós que temos de responder-lhe. É um caso local, não nos diz respeito. Ou tens alguma ligação?
― Bancos internacionais ― disse Cilke. ― Mas tens razão, não faz sentido gastar mais dinheiro do Bureau. Manda cancelar as escutas.
Kurt Cilke gostava de cães porque eram incapazes de conspirar, Não sabiam esconder a sua hostilidade, não eram manhosos. Não passavam noites acordados a inventar maneiras de roubar e assassinar outros cães. A traição estava fora do seu alcance. Tinha dois pastores alemães para ajudar a guardar a casa, e todas as noites os levava a passear pelos bosques próximos, em perfeita harmonia e confiança.
Quando nessa noite chegou a casa, ia satisfeito. Não havia perigo naquela situação, pelo menos da parte dos filhos do Dom. Não haveria vendetas sangrentas.
Cilke vivia em Nova Jersey com uma mulher que amava e uma filha de dez anos que adorava. A casa estava protegida por um apertado sistema de segurança, além dos dois cães. O governo pagava. A mulher recusara-se a aprender a usar uma arma, e ele contava com o anonimato. Os vizinhos, e até a filha, julgavam-no advogado (o que era aliás verdade). Quando estava em casa, conservava sempre a arma, as munições e o cartão do FBI fechados à chave numa gaveta.
Nunca levava o carro até à estação onde apanhava o comboio para a cidade. Não fosse algum miúdo partir-lhe um vidro para roubar o rádio. Quando regressava a Nova Jersey, ligava à mulher pelo telemóvel e ela ia buscá-lo. Uma viagem de cinco minutos.
Nessa noite, Georgette recebeu-o com um carinhoso beijo nos lábios. Vanessa, tão irreprimivelmente viva, saltou-lhe para os braços. Os dois cães agitavam-se à sua volta, mas comedidamente. Havia espaço de sobra para todos no grande Buick.
Era desta parte da sua vida que Cilke verdadeiramente gostava. Com a família, sentia-se seguro, em paz. A mulher amava-o, bem o sabia, admirava-lhe o caráter, o fato de fazer o seu trabalho sem malícia nem trapaças, com um sentido de justiça para com o próximo, por muito depravado que esse próximo fosse. Ele apreciava-lhe a inteligência, e confiava nela o suficiente para falar-lhe do que fazia. Embora não pudesse, evidentemente, contar-lhe tudo. Georgette tinha a sua própria vida profissional bem preenchida: escrevia sobre mulheres famosas da História, ensinava filosofia na universidade local, batia-se pelas suas causas sociais.
Cilke ficou a vê-la preparar o jantar. A beleza dela sempre o encantara. Viu Vanessa pôr a mesa, imitando a mãe, tentando inclusivamente andar com a mesma graça de bailarina. Georgette nunca quisera qualquer espécie de empregada doméstica, e educara a filha para ser auto-suficiente.
Com seis anos, já Vanessa fazia a sua própria cama, arrumava o seu próprio quarto e ajudava a mãe a cozinhar. Pela milionésima vez, Cilke perguntou a si mesmo por que seria que a mulher o amava, e agradeceu aos céus a bênção daquele amor.
Mais tarde, depois de terem deitado a filha (Cilke verificou a campainha que ela poderia tocar se precisasse deles), foram para o quarto. Como sempre, Cilke sentiu um estremecimento de fervor quase religioso quando a mulher se despiu. Então os grandes olhos cinzentos dela, tão inteligentes, enevoaram-se de amor. Muito depois, quando adormeceram, ela pegou-lhe na mão para guiá-los a ambos nos seus sonhos.
Cilke conhecera-a durante uma investigação sobre organizações universitárias radicais suspeitas de pequenos atos de terrorismo. Georgette era uma ativista política que ensinava História numa universidade de Nova Jersey. A investigação provara que era apenas uma liberal, sem qualquer relação com grupos radicais. E Cilke assim escrevera no seu relatório.
No entanto, quando a interrogara, ficara surpreendido pela sua total ausência de preconceito ou animosidade contra ele como agente do FBI. Na realidade, mostrara-se interessada no que fazia, no que pensava a respeito do seu trabalho; e ele, surpreendentemente, dissera-lhe a verdade: que era um dos guardiões de uma sociedade que não podia existir sem regras. Acrescentara, meio a brincar, que era o escudo que defendia as pessoas como ela daqueles que a devorariam para servir os seus próprios fins.
O namoro fôra curto. Casaram rapidamente, no fundo um pouco para impedir que o senso comum de qualquer deles interferisse com aquele amor, pois reconheciam que eram sob muitos aspectos o oposto um do outro. Ele não partilhava uma única das convicções dela; no que respeitava ao mundo em que vivia, ela era uma inocente. Ela não partilhava minimamente a reverência dele para com o Bureau. Mas ouvia-lhe os queixumes, a pena que lhe causava a difamação do santo do FBI, J. Edgar Hoover. “Descrevem-no como um homossexual encapotado e um reacionário preconceituoso, quando na realidade foi um homem dedicado que simplesmente nunca chegou a desenvolver uma consciência liberal.”
― Os escritores comparam o FBI à Gestapo e ao KGB ― dissera-lhe ele certa vez ―, mas nós nunca recorremos à tortura, e nunca incriminamos falsamente fosse quem fosse... ao contrário do Departamento de Policia de Nova Iorque, por exemplo. Nunca plantamos provas falsas. Se não fossemos nós, os miúdos das universidades perderiam todas as suas liberdades. A direita destrui-los-ia. Politicamente, são completamente imbecis.
Georgette sorrira ante tanta paixão, e sentira-se tocada por ela.
― Não esperes que eu mude ― dissera-lhe, sorrindo. ― Se o que dizes é verdade, então não há conflito entre nós.
― Não quero que mudes ― respondera Cilke. ― E se o FBI afetar o nosso relacionamento, procurarei outro trabalho.
Nem precisara de dizer-lhe o sacrifício que isso teria representado para ele.
Quantas pessoas podem dizer que são perfeitamente felizes, que têm um ser humano em quem confiam sem reservas? Ele encontrava um conforto enorme no seu papel de guardião, da fidelidade que guardava ao corpo e ao espírito dela. E ela sentia a vigilância com que, cada segundo de cada dia, ele velava pela sua segurança e pela sua sobrevivência.
Cilke sentia-lhe dolorosamente a falta sempre que era obrigado a ausentar-se para cursos de treino. Nunca fôra tentado por outras mulheres porque nunca quisera conspirar contra ela. Ansiava pelo momento de voltar a casa, ao sorriso confiante de Georgette, ao seu corpo oferecido num gesto de boas-vindas, quando ela o esperava na cama, nua e vulnerável, perdoando-o pelo trabalho que fazia, uma bênção na sua vida.
Esta felicidade era, no entanto, ensombrada pelos segredos que ele tinha de guardar, pelas graves complicações do seu trabalho, pelo seu conhecimento de que o mundo estava infectado pelo pus de homens e mulheres cheios de maldade, pelas nódoas de humanidade que alastravam ao seu próprio cérebro. Sem ela, não valeria pura e simplesmente a pena viver.
Certa vez, muito ao princípio, ainda trêmulo de medo da felicidade, fizera a única coisa de que verdadeiramente se envergonhava. Montara aparelhos de escuta em sua própria casa para registrar todas as palavras que a mulher dizia. À noite, no segredo da cave, ouvia as gravações. Perscrutara-lhe todas as inflexões, e ela passara o teste; nunca fora maliciosa, nem mesquinha, nem traiçoeira. Fizera isto durante mais de um ano.